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Editorial

A bigamia derrotada no STF

Projeto do novo Tribunal Regional Federal da 6ª Região foi proposto pelo presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha.
Sessão virtual do STF terminou com seis votos contra cinco pela rejeição da possibilidade de uniões estáveis simultâneas. (Foto: Felipe Sampaio/STF)

Assim como ocorreu no caso da possibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado, mais uma virada benéfica à sociedade brasileira no Supremo Tribunal Federal enterrou – ao menos por ora – a possibilidade de se introduzir, via decisão judicial, a bigamia no ordenamento jurídico brasileiro. Em setembro de 2019, cinco ministros votaram pela possibilidade de se reconhecer uniões estáveis simultâneas, contra três que recusaram esse reconhecimento, incluindo o relator, Alexandre de Moraes. Dos três votos que faltavam, bastaria um em favor da bigamia; no entanto, Dias Toffoli, Nunes Marques e o presidente da corte, Luiz Fux, definiram a questão em estrito respeito à Constituição e à legislação infraconstitucional, que consagram a monogamia como base do direito de família brasileiro.

Os ministros não estavam propriamente debatendo uma ação que tratasse explicitamente da possibilidade de introduzir a bigamia no país; tratava-se, na verdade, de um pedido de divisão de pensão por morte de um homem. Sua companheira já havia conseguido o benefício, mas o falecido mantinha, também, um relacionamento homossexual. Na primeira instância, o parceiro conseguiu a divisão da pensão, mas a segunda instância reverteu o resultado. Quando o julgamento no STF foi iniciado, Moraes defendeu a decisão dos desembargadores, mas logo se viu em desvantagem, com o ministro Edson Fachin abrindo a divergência e sendo seguido por quatro colegas.

Eu seu voto, Alexandre de Moraes deixou claro que a lei brasileira consagra o “dever de fidelidade e monogamia”, o que impede tanto uniões simultâneas quanto as chamadas “uniões poliafetivas”

O raciocínio de Fachin foi o de que a controvérsia era meramente previdenciária, não de direito de família. Uma dissociação que não resiste ao fato de que ambos os ramos do direito estão profundamente entrelaçados. Reconhecer a divisão da pensão significaria, implicitamente, reconhecer duas uniões estáveis simultâneas – afinal, é a união estável que gera o direito à pensão. Daí a consequência prática: caso permitisse a divisão da pensão, o Supremo estaria tornando legal uma situação de bigamia, explicitamente proibida na legislação brasileira. Felizmente, também não prosperou outro argumento, o do ministro Luís Roberto Barroso, que quis ver uma brecha na lei para argumentar que ela proibiria dois casamentos simultâneos, mas não duas uniões estáveis simultâneas, como se a lei não reconhecesse direitos e deveres similares para ambos os institutos.

A formulação de Moraes em seu voto é bastante feliz: “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, §1.º do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro” (a exceção se refere à possibilidade de uma nova união da parte de quem já esteve casado ou em união estável, mas se separou). Isso porque ela deixa claro que a lei brasileira consagra o “dever de fidelidade e monogamia”, o que tem consequências sobre outra pretensão que tenta reescrever o conceito de família.

Cartórios e juízes de instâncias inferiores já chegaram a reconhecer as eufemisticamente chamadas “uniões poliafetivas”, em que mais de duas pessoas, de forma consensual, pleiteiam que o Estado veja sua situação da mesma forma como veria qualquer outro casamento ou união estável, incluindo os direitos daí decorrentes. Os defensores desta alternativa serão rápidos em apontar as diferenças para a situação rejeitada pelo Supremo: enquanto a bigamia consistiria em duas uniões simultâneas, quase sempre envolvendo engano e traição da parte de ao menos um dos envolvidos, o “poliamor” envolveria uma única união, embora com três ou mais integrantes, todos plenamente conscientes daquilo que pretendem viver. Mas também essa alternativa fica vedada pela formulação adotada por Alexandre de Moraes, para quem a única possibilidade aceita pelo ordenamento jurídico constitucional brasileiro é a monogamia.

Este julgamento mostrou que quase metade da composição atual do STF está disposta a promover redesenhos da configuração familiar que contam com o apoio de entidades empenhadas em fornecer o arcabouço intelectual e jurídico para tal revolução. O Supremo ainda será chamado outras vezes para resolver questões do direito de família; que a definição inequívoca do voto de Alexandre de Moraes, em defesa da fidelidade e da monogamia, sirva de baliza quando emergirem novos desafios que, sob a bandeira da “adequação aos novos tempos”, buscam apenas enfraquecer laços que formam a base da sociedade.

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