A quem cabe definir políticas públicas a respeito da posse e porte de armas? E critérios de política comercial, são competência de que poder ou órgão? São duas questões que o Supremo Tribunal Federal terá de enfrentar a partir desta sexta-feira, dia 18, quando, em sessão virtual, os ministros decidirão se mantêm ou derrubam uma liminar de Edson Fachin. Na segunda-feira, dia 14, o magistrado revogou, a pedido do Partido Socialista Brasileiro, uma portaria do Comitê Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (Gecex) do Ministério da Economia que zerava o imposto de importação de revólveres e pistolas a partir de 1.º de janeiro de 2021.
A Constituição, como admite o próprio Fachin em sua liminar, garante ao Poder Executivo, no artigo 153, § 1.º, o direito de impor e alterar alíquotas de vários tributos, inclusive o Imposto de Importação. A jurisprudência do Supremo reconhece, também, o direito de um governo zerar alíquotas desses impostos. A questão, afirma Fachin, é analisar se estão em jogo direitos constitucionais que essa isenção fiscal estaria violando. É esse aspecto que torna mais delicada a discussão sobre a portaria do Gecex; não se trata de uma mera discussão sobre tributação, mas sobre os efeitos que ela pode ter na sociedade.
É a sociedade, por meio de seus representantes eleitos, que define quais as melhores políticas de segurança pública (incluída, aí, a questão da posse e porte de armas), e não o Poder Judiciário
Parte-se da admissão de que, com o imposto zerado e preços mais baixos, a aquisição de armas de fogo de maneira legal pelo cidadão devidamente habilitado a tal – e as exigências legais e burocráticas não foram alteradas – será facilitada, tendo como resultado um maior número de armas em circulação. As divergências se manifestam nas possíveis consequências que isso teria, havendo um amplo leque de posições, desde aqueles para quem o Brasil se tornaria um cenário de faroeste do século 21 até aqueles para quem o direito do cidadão a viver sem medo da violência urbana estaria finalmente garantido, com bandidos amedrontados – e há, ainda, diversos “tons de cinza” entre esses dois extremos. Por fim, existem estatísticas e exemplos internacionais em número abundante para embasar qualquer posição que se tenha a respeito do tema. Fachin deixa evidente sua postura ao afirmar que “conclui-se pela verossimilhança da alegação de que a redução a zero da alíquota do Imposto de Importação sobre pistolas e revólveres, por contradizer o direito à vida e o direito à segurança, viola o ordenamento constitucional brasileiro”.
Ocorre, no entanto, que, ainda que o direito à vida e o direito à segurança estejam explicitamente previstos na Constituição, a Carta Magna silencia sobre políticas de acesso ao armamento, isso porque elas são meio para garantir os dois direitos citados, e não um fim em si mesmas. Isso significa que existe uma margem de discricionariedade pela qual é a sociedade, por meio de seus representantes eleitos, que define quais as melhores políticas de segurança pública (incluída, aí, a questão da posse e porte de armas), e não o Poder Judiciário. Esta Gazeta do Povo, por exemplo, acredita que não é saudável ter uma sociedade armada, mas também rejeita o desarmamento total que coloca o brasileiro à mercê da bandidagem, defendendo um meio termo sobre o tema. Mas não vemos nossa posição como a única constitucionalmente possível, muito menos acreditamos que seja papel do Judiciário impô-la a uma sociedade que, pelo voto, consagrou outra postura a respeito deste assunto.
Se já é criticável a pretensão de resolver pela via judicial uma discussão cujo locus reside no Executivo e no Legislativo, cada um dentro das atribuições que lhe competem, um aspecto ainda mais absurdo da liminar está no fato de Fachin estabelecer as bases para um “dever constitucional do protecionismo”. Para isso, ele invoca o artigo 219 da Carta Magna, segundo o qual “o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país, nos termos de lei federal”.
- O decreto de Bolsonaro e o acesso às armas (editorial de 16 de janeiro de 2019)
- As portarias revogadas por Bolsonaro e as armas que o Estado tem de rastrear (artigo de Fabio Kinsel, publicado em 7 de maio de 2020)
- As armas dos criminosos e a utopia do desarmamento (artigo de Bene Barbosa, publicado em 8 de março de 2015)
É com esse trecho em mente que o ministro alega: “É inegável que, ao permitir a redução do custo de importação de pistolas e revólveres, o incentivo fiscal contribui para a composição dos preços das armas importadas e, por conseguinte, perda automática de competitividade da indústria nacional; o que afronta o mercado interno, considerado patrimônio nacional, conforme prescrito na ordem econômica constitucional”. Ora, tal raciocínio justificaria o protecionismo (e até mesmo o fechamento total) não apenas no setor de armas, mas em todos os outros ramos da economia, já que qualquer abertura comercial tem efeitos sobre o produtor nacional, com o aumento da concorrência.
“Mercado interno” não pode ser lido como a mera proteção do interesse do produtor nacional a qualquer custo, mas como um sistema abrangente que envolve equilíbrio entre oferta e procura, incluindo aí a necessidade de contemplar também os desejos do consumidor – por exemplo, de ter acesso a produtos de melhor qualidade a preços mais acessíveis. Ao Estado cabe, quando muito, intervir para combater possíveis distorções, como monopólios ou cartéis, situações que prejudicam tanto outras empresas que pretendem competir em determinado mercado quanto os consumidores interessados nos produtos ou serviços oferecidos.
Por mais que todos os ministros do STF tenham suas opiniões a respeito da questão do armamento, portanto, não é ela que está em jogo aqui, mas a pretensão do Judiciário de continuar se impondo em questões que são prerrogativas de outros poderes, seja as políticas de acesso às armas, seja a definição de alíquotas comerciais – uma intromissão que, desta vez, ainda vem acompanhada de visões totalmente equivocadas no campo econômico. Ainda que a portaria desagrade os que defendem o desarmamento, em maior ou menor grau, não parece compatível com o espírito da Constituição negar ao governo as prerrogativas que ele pretende exercer por meio do texto em questão.