Reitores de universidades federais são escolhidos pelo presidente da República, que escolhe um de três nomes enviados a ele pela própria universidade. A regra é bastante simples e está na lei – no caso, a Lei 9.192/95. Ela altera uma legislação de 1968, e determina que “o reitor e o vice-reitor de universidade federal serão nomeados pelo presidente da República e escolhidos entre professores dos dois níveis mais elevados da carreira ou que possuam título de doutor, cujos nomes figurem em listas tríplices organizadas pelo respectivo colegiado máximo, ou outro colegiado que o englobe, instituído especificamente para este fim, sendo a votação uninominal”. Mais claro, impossível – menos para o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal.
Em liminar proferida dentro de uma ação de inconstitucionalidade ajuizada pelo Partido Verde, Fachin determinou que o presidente da República, agora, tem toda a liberdade de escolher o reitor – desde que escolha o primeiro da lista, aquele que for mais votado pelo colegiado citado na lei. O plenário do Supremo está avaliando o mérito da questão; seis ministros já votaram até a sexta-feira, dia 16, e o julgamento está empatado em 3 a 3, com Celso de Mello e Cármen Lúcia acompanhando o entendimento adotado por Fachin, repleto de contradições, a começar pela criação de uma surreal “lista tríplice de um” e pela liberdade sui generis concedida ao presidente da República: pode escolher à vontade, mas o cardápio só tem um único prato.
A contradição não está apenas no teor da decisão, diga-se de passagem; está também no fato de o próprio Fachin já ter feito a leitura correta da lei em outra ocasião. Em 2012, Dilma Rousseff escolheu dar um segundo mandato de reitora a uma professora da Universidade Federal de Mato Grosso, e outro membro da lista tríplice foi ao STF questionar a escolha, alegando que tanto a escolhida quanto outra professora cujo nome constava da lista não atendiam os requisitos legais para se candidatar ao cargo. Em 2016, Fachin rejeitou o pedido do candidato derrotado e, ainda que a questão específica não envolvesse a escolha ou não do mais votado, o ministro deixou muito claro em sua decisão que, “dentre os que figuram na lista tríplice, porque já atendem aos requisitos da lei, não há hierarquia e o(a) presidente pode escolher livremente o nomeado”.
Se o presidente eleito pelo povo que banca as universidades públicas não pode escolher seus reitores – e o modelo de lista tríplice já reduz bastante as possibilidades de escolha –, quem termina amarrado não é apenas o presidente, mas a população
Ali, sim, o ministro havia acertado o centro da questão, e é difícil encontrar uma explicação para o fato de, quatro anos depois, ele ter decidido que a legislação por ele defendida em 2016 seria agora inconstitucional, por violar a autonomia universitária, inclusive no campo administrativo, prevista no artigo 207 da Constituição. Ela jamais foi entendida no sentido de reservar à própria instituição o direito de escolher quem a dirige – do contrário, nem haveria necessidade de nomeação por parte do presidente da República; bastaria que os colégios eleitorais das universidades elegessem seus reitores e os empossassem no ato. O próprio Fachin, em sua decisão de 2016, escrevera que “o ato de nomeação se encontra dentro da discricionariedade do(a) presidente da República”, e ainda citou jurisprudência do STF em defesa do processo de lista tríplice com a escolha final sendo prerrogativa do chefe do Executivo.
Há toda uma lógica por trás do processo como havia sido definido pelo legislador. Universidades federais são mantidas com recursos públicos, retirados de todos os cidadãos por meio dos impostos. A cada quatro anos, a maioria desses cidadãos, nas urnas, consagra determinado ideário que também inclui proposições para a educação superior; e uma das ferramentas possíveis para a implementação desse ideário é justamente a escolha de quem estará à frente das instituições. A lei, portanto, define um equilíbrio entre a vontade da comunidade acadêmica, refletida pelo colégio eleitoral que elaborará a lista tríplice; e a vontade popular, representada no presidente da República, que escolherá um dos três nomes a ele submetidos. Ora, se o presidente eleito pelo povo que banca as universidades públicas não pode escolher seus reitores – e o modelo de lista tríplice já reduz bastante as possibilidades de escolha –, quem termina amarrado não é apenas o presidente, mas a população, privilegiando-se, basicamente, os docentes de cada universidade.
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E aqui reside o aspecto corporativista da decisão de Fachin. Isso porque as consultas à comunidade universitária, às vezes vistas pela opinião pública como uma “eleição para reitor”, até estão previstas na mesma Lei 9.192, mas não têm caráter impositivo; quem realmente elabora a lista tríplice enviada ao governo são os colégios eleitorais dos Conselhos Universitários, nos quais os professores têm o maior peso – pelo menos 70% da composição dos colegiados, segundo a lei. Normalmente os colegiados espelham os resultados das consultas mais amplas, ao menos na consagração do vencedor no “voto popular”. Em muitos casos, os derrotados na consulta retiram suas candidaturas e o colégio eleitoral preenche a lista tríplice com o vencedor e outros dois nomes, alinhados com o primeiro colocado. Esse processo, por si só, ainda que plenamente amparado pela lei, já pode ser visto como um certo desrespeito à fatia da comunidade acadêmica que votou nos candidatos perdedores; a restrição agora imposta por Fachin completaria o trabalho de desequilibrar totalmente aquela relação entre a vontade popular e o desejo dos membros da instituição.
Há casuísmo na ação proposta pelo PV? Certamente que sim, pois Jair Bolsonaro vem indicando reitores que constavam de listas tríplices sem serem os mais votados. A reação aos casos em que isso já ocorreu mostra bem o apreço da esquerda pela lei: os novos reitores são alvo de protestos, têm sua atuação inviabilizada e são costumeiramente chamados de “interventores”, ainda que tenham sido nomeados estritamente de acordo com a Lei 9.192. Quem propôs a ação tem o claro objetivo de não deixar brechas para qualquer tipo de mudança ideológica, ainda que um reitor mais à direita nem sempre consiga imprimir suas convicções a toda uma universidade que tenha uma estrutura fortemente aparelhada e impossível de mover graças à estabilidade de professores e servidores. Mas, ainda que exista o jus sperneandi, caberia ao julgador se ater aos princípios sem olhar nomes.
Afinal, se prosperar a tese de Fachin, qualquer presidente da República, de esquerda ou de direita, estará reduzido a mero carimbador da decisão dos colégios eleitorais universitários. As consequências dessa restrição extrapolam o campo ideológico – um mau gestor que tenha forte ascendência sobre o colégio eleitoral poderá ser automaticamente reconduzido ao cargo, por exemplo. Não há interpretação ou inconstitucionalidade possível que justifique retirar do presidente a prerrogativa de escolher os reitores das universidades federais – uma escolha que, ressalte-se, já é limitada pelo primeiro filtro realizado dentro das próprias instituições. Que os demais ministros do STF, cujos votos decidirão a questão, saibam preservar o respeito à lei e à jurisprudência do Supremo, bem como o equilíbrio que faz da nomeação de reitores uma expressão conjunta das vontades da comunidade acadêmica e do cidadão que sustenta as instituições com seus impostos.