Entre os diversos tipos de intromissão do Poder Judiciário nas atribuições dos demais poderes estão os casos em que magistrados se colocam no papel de elaboradores de políticas públicas, tomando para si decisões que são do âmbito do Poder Executivo. Apenas nos últimos dias o Supremo Tribunal Federal protagonizou duas dessas situações – uma, com votação em plenário, e outra, por meio de decisão monocrática.
Na segunda-feira, a corte decidiu, por 7 votos a 4, obrigar o governo federal a estabelecer um valor para um programa de renda básica universal, em resposta a um pedido da Defensoria Pública da União. O que estava em jogo era a regulamentação, jamais ocorrida, de uma lei aprovada em 2004 e que é mais um exemplo perfeito da crença da classe política na geração espontânea de dinheiro público. A Lei 10.835/04 instituía “a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no país e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário”.
Nenhum governo, desde 2004, regulamentou a renda básica. Apenas os ministros do Supremo não enxergaram a impossibilidade de colocá-la em prática e abraçaram o terraplanismo orçamentário com sua decisão
À parte o contrassenso de distribuir dinheiro público até mesmo a quem não tem a menor necessidade dele, a descrição do benefício e das condições em que ele deve ser concedido revelam a completa impossibilidade de colocá-lo em prática: o valor teria de ser “suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde”, mas seu pagamento precisaria levar em conta “as possibilidades orçamentárias” e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Em resumo, a lei determina o impossível, e não à toa ela permaneceu sem regulamentação por uma década e meia, com governos de todos os lados do espectro ideológico. Apenas os ministros do Supremo, aparentemente, não enxergaram essa obviedade, abraçando o terraplanismo orçamentário segundo o qual sempre há dinheiro para tudo.
Benefícios financeiros aos mais necessitados são uma política defendida inclusive por pensadores liberais, como Milton Friedman, e não há como questionar a necessidade de apoio especialmente aos mais vulneráveis, os tão miseráveis que não têm nem mesmo condições de se erguer por conta própria da situação em que vivem, e precisam da ajuda da sociedade ou, se preciso for, do Estado. E os sucessivos governantes brasileiros não têm sido omissos neste ponto, já que o Bolsa Família vem funcionando normalmente e pode muito bem ser visto como um programa de renda básica voltado aos mais pobres. Seu valor pode estar longe do ideal, e não se trata de um benefício incondicional como a renda básica aprovada em 2004, mas as condicionantes (como a frequência escolar dos filhos) são perfeitamente razoáveis. O atual governo, inclusive, tentou por meses, ainda que de maneira bastante atabalhoada, estabelecer um programa substituto, com benefício maior e incluindo mais brasileiros, mas ele simplesmente não coube no Orçamento – como, aliás, também não caberia a renda básica ora ordenada pelo Supremo, ainda que estabelecida de forma gradual, começando pelos mais pobres.
Se o plenário do Supremo demonstrou, na segunda-feira, não ter a menor ideia sobre a origem do dinheiro para a renda básica, o ministro Marco Aurélio Mello fez o mesmo na quarta-feira, quando, liminarmente, ordenou que o governo realize o Censo, que deveria ter ocorrido em 2020, mas foi adiado devido à pandemia de Covid-19, e também não seria feito em 2021 por falta de previsão orçamentária. Os cerca de R$ 2 bilhões necessários para o recenseamento foram deslocados pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator do Orçamento, para emendas parlamentares, e o presidente Jair Bolsonaro ainda vetou mais R$ 17 milhões que poderiam ser empregados na preparação do Censo em 2022. De onde o governo terá de retirar o dinheiro para o Censo? Problema do Poder Executivo, já que Marco Aurélio simplesmente lavou as mãos quanto a isso.
Há vários motivos pelos quais se pode criticar a decisão de adiar mais uma vez o Censo. Já há muito se consolidou a noção de que dados também são uma riqueza – qualquer empresa busca o máximo possível de informações sobre seus clientes, por exemplo, para oferecer melhores produtos e serviços e maximizar seus resultados. Com o poder público não é diferente: quanto mais precisas as informações sobre a população, mais eficientes serão as políticas públicas e a alocação de recursos e investimentos. O Brasil está vivendo de estimativas feitas a partir de dados coletados em 2010, e cada ano que se passa sem a atualização dessas informações deixa os gestores mais no escuro, o que pode até mesmo levar a desperdício de recursos, aplicados onde não são necessários.
Mas não é função do Judiciário “consertar” as escolhas equivocadas do Executivo. Quando age da forma como vem agindo, o Supremo se coloca no papel de gestor público, tomando para si a função de decidir as políticas públicas de sua preferência que devem ser executadas e atropelando o programa que – goste-se dele ou não, com todos os seus acertos e erros – foi o escolhido pela maioria da população nas urnas. Ainda que as contas públicas estivessem em ordem, ainda que estivesse sobrando dinheiro nos cofres de Brasília para se realizar o Censo e para bancar a renda básica, a decisão caberá sempre ao Poder Executivo. Este tipo de interferência do Judiciário, portanto, é uma anomalia institucional grave à qual não podemos nos acostumar.
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