O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, devolveu para julgamento a ação que analisa uma possível inconstitucionalidade de um artigo da Lei de Drogas (11.343/2006). Até o momento, existem quatro votos pela inconstitucionalidade – faltam mais dois votos para que o STF, na prática, legalize o porte de drogas para consumo próprio no Brasil. Mendes, em seu voto original, defendeu a liberação para todos os entorpecentes; seus colegas Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes aceitam a descriminalização do porte apenas para a maconha, e há a possibilidade de que, quando o julgamento seja retomado, o relator altere seu voto para deixá-lo de acordo com a posição dos outros três ministros.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo quer derrubar o artigo 28 da lei, segundo o qual é crime “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” – fica evidente, aqui, que o texto se refere não ao traficante, mas ao usuário. E é importante ressaltar que a lei já trata o usuário de forma diferenciada, pois, ainda que criminalize o porte de drogas, não prevê pena de prisão, e sim as penas de “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. Foi justamente o que ocorreu no caso específico em análise: uma pessoa que já estava presa por outro crime teve de cumprir pena de serviços comunitários por ter sido flagrada com três gramas de maconha em sua cela, em 2009. Curiosamente, ninguém se interessou muito em saber como a droga foi parar dentro de um presídio; a Defensoria se empenhou muito mais em argumentar que a lei representaria uma violação da intimidade do detento, garantida constitucionalmente no artigo 5.º, X, da Carta Magna.
Com ou sem ajuste no voto de Gilmar Mendes, certo é que uma vitória da tese defendida por ele e por Barroso, Fachin e Moraes seria um enorme erro, tanto na forma quanto no conteúdo
É um argumento que não se sustenta, porque deixaria implícito que o Estado não poderia legislar sobre absolutamente nenhum comportamento privado, tenha ou não tenha consequências públicas. Mas não é o que ocorre; quando o julgamento se iniciou, em 2015, o advogado Davi Azevedo, representando a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina e da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas, citou a exigência de uso de equipamentos de segurança para motoristas, passageiros e motociclistas para mostrar que há, sim, razoabilidade em determinadas legislações que aparentemente interfeririam na autonomia privada.
E o legislador acertou tanto ao criminalizar o porte quanto ao prever penas alternativas à prisão para o usuário. A criminalização faz sentido porque os efeitos nocivos das drogas, incluindo a maconha, estão fartamente documentados. Da literatura médica ao senso comum e aos relatos pessoais, não faltam evidências de que as drogas não têm “quantidade segura” para consumo e de que seu uso leva a uma espiral de degradação que vai de danos neurológicos à transformação dos viciados em zumbis sem autonomia alguma, o que é facilmente observado nas cracolândias brasileiras. Ignorar que a droga destrói o usuário e seu entorno próximo, especialmente sua família, é deixar a ideologia prevalecer sobre a realidade. E os efeitos que a droga tem são mais que suficientes para legitimar a ação do poder público para coibir sua disseminação. Mas, se é razoável a criminalização das drogas, também é razoável enxergar o usuário como uma vítima da engrenagem que o tráfico faz funcionar. Quem se deixou levar pelo vício, independentemente do grau de responsabilidade que tenha sobre seu próprio infortúnio, precisa mais de tratamento que de cadeia, e o legislador compreendeu isso, livrando o usuário da prisão, reservada ao traficante.
Isso nos leva ao segundo ponto, e que gerou inclusive uma reação pouco frequente do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco: esta é uma escolha que deve ser feita pelo Legislativo, e não pelo Judiciário. Os ministros do Supremo, mais uma vez, fazem ativismo judicial, assumindo para si o papel de legisladores, alegando uma inconstitucionalidade inexistente para derrubar uma lei da qual discordam, e chegam ao ponto de querer estabelecer regras exatas para separar o usuário do traficante, como o limite de 60 gramas sugerido por Alexandre de Moraes. Chega a surpreender que tal ideia tenha vindo de alguém com passagem pela Secretaria de Segurança Pública do maior estado do país, sede de facções poderosíssimas do crime organizado, e que deveria conhecer o grau de engenhosidade do tráfico – algo que não passou despercebido pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que em 2015 alertou para “a institucionalização do exército de formigas”, em que os traficantes passariam a circular com quantidades de droga que lhes permitissem ser tidos por usuários, e não pelo que realmente são.
Com ou sem ajuste no voto de Mendes, certo é que uma vitória da tese defendida por ele e por Barroso, Fachin e Moraes seria um enorme erro, tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, porque mais uma vez usurpa a prerrogativa do Legislativo no estabelecimento da lei penal. No conteúdo, porque daria o sinal verde para o uso livre de substâncias – uma ou várias, tanto faz – comprovadamente nocivas, potencializando todos os dramáticos efeitos sociais que o país já experimenta e enviando ao país uma mensagem diametralmente contrária àquela de que o Brasil necessita.