Por sabe-se lá mais quanto tempo, a vontade monocrática de uma única pessoa continuará prevalecendo sobre a separação de poderes e sobre o voto de centenas de representantes eleitos pelo povo, prejudicando a boa governança das estatais brasileiras. Na última quarta-feira, dia 6, um novo pedido de vista, desta vez do ministro Nunes Marques, interrompeu pela segunda vez a votação, no plenário do Supremo Tribunal Federal, da liminar do já aposentado Ricardo Lewandowski que derrubava trechos da Lei das Estatais e reabria a porteira das indicações políticas nas empresas controladas pelo Estado. Com isso, a liminar segue em pé e tem tudo para completar um ano sem uma decisão final do Supremo, já que Nunes Marques teoricamente tem até março de 2024 para devolver o assunto ao plenário.
Após a vitória eleitoral de Lula, em outubro de 2022, o petismo começou a se movimentar para derrubar no Congresso as importantes vedações que a Lei das Estatais impunha à nomeação de detentores de mandato eletivo, ministros e secretários, a cargos de direção ou nos Conselhos de Administração de estatais, bem como a quarentena de três anos para quem tivesse sido dirigente sindical ou partidário. Um projeto de lei foi rapidamente aprovado na Câmara, mas parou no Senado devido à repercussão negativa. Foi quando o PCdoB, fiel escudeiro do petismo, buscou o Supremo para conseguir pelo Judiciário o que Lula não teria no Legislativo, e encontrou a caneta amiga de Lewandowski, que não esperou a conclusão do julgamento já iniciado em plenário virtual e concedeu a liminar que permitiu, por exemplo, nomeações como a de Aloizio Mercadante para a presidência do BNDES e dos ex-governadores Fernando Pimentel, mineiro, e Paulo Câmara, pernambucano, para a Emgea e o Banco do Nordeste, respectivamente.
As vedações estabelecidas pela Lei das Estatais buscam evitar algo que é fatal para a administração de qualquer empresa, não apenas uma estatal: o conflito de interesses. São regras que fazem todo o sentido e estão longe de serem inconstitucionais
Na sessão do dia 6, André Mendonça, que segurou o julgamento por quase nove meses em vez dos três regulamentares, pelo menos fez a coisa certa ao divergir do relator e defender a constitucionalidade das regras estabelecidas em 2016. Estabelecer critérios para o preenchimento dos cargos de comando de empresas estatais é competência do Poder Legislativo tanto quanto o é, por exemplo, definir quem pode se candidatar a cargos eletivos. O Poder Judiciário só poderia interferir se a lei criasse uma discriminação injusta, o que obviamente não é o caso da Lei das Estatais. Quando bloqueia a nomeação de parlamentares e de ocupantes de cargos por indicação política (como ministros e secretários), ou quando exige um tempo razoável de desincompatibilização de cargos de direção em entidades sindicais ou partidos políticos, a legislação aprovada em 2016 tenta evitar algo que é fatal para a administração de qualquer empresa, não apenas uma estatal: o conflito de interesses. Trata-se, portanto, de regra que faz todo o sentido, estando inclusive alinhada às boas práticas preconizadas por entidades como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, como lembrou Mendonça em seu voto.
Ressalte-se, aqui, que a regra faria sentido mesmo que não tivesse havido a verdadeira pilhagem realizada pelo petismo durante sua primeira passagem pelo Planalto, quando as indicações políticas, especialmente na Petrobras, foram o meio escolhido para colocar em prática o esquema urdido pelo partido em conluio com empreiteiras e legendas aliadas. A Lei das Estatais, com suas regras para moralizar as nomeações, foi uma reação à ladroagem que a Operação Lava Jato expôs ao país, mas teria sido um avanço em qualquer circunstância, simplesmente por reforçar a aplicação dos princípios constitucionais que regem a administração pública e estão no artigo 37 da Constituição. Portanto, as vedações não são inconstitucionais, como argumentou Lewandowski – pelo contrário: elas vêm para garantir que a Constituição seja efetivamente posta em prática quando se trata das empresas estatais.
Quanto mais o Supremo tarda a definir esta obviedade, mais escancarada fica a nova tentativa do governo Lula de avançar sobre as estatais. O prêmio principal continua a ser a Petrobras, que entre 2016 e 2022 passou por um árduo e ainda incompleto processo de recuperação que o petismo se empenha agora em reverter. Os entusiastas das nomeações políticas chegaram ao cúmulo de tentar alterar o estatuto da petrolífera para cristalizar nele o entendimento de Lewandowski, sem se importar com o fato de que ainda havia um julgamento a ser concluído no STF. Foi necessária a intervenção do Tribunal de Contas da União (TCU), acionado pelo Partido Novo, para impedir que a mudança fosse sacramentada.
Como a Constituição afirma que a presença direta do Estado na economia se dá apenas em circunstâncias extraordinárias, empresas estatais só deveriam existir em casos muito específicos. E, mesmo nesses casos, aqueles que têm a missão de administrá-las devem fazê-lo tendo em vista o que é melhor para a companhia, e não a mera vontade do governante de turno. A Lei das Estatais tomou a direção certa ao buscar separar os interesses políticos dos interesses da empresa, e para isso impôs o caminho da profissionalização dos Conselhos de Administração e dos cargos de direção, ao contrário do aparelhamento deletério que marcou o passado recente. Não há motivo nenhum para o STF decidir por um retorno à situação anterior, e quanto antes reafirmar o valor da Lei das Estatais, melhor.