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Ministério da Educação notificou universidades que ofertaram cursos de Medicina sem autorização.
Ministério da Educação notificou universidades que ofertaram cursos de Medicina sem autorização.| Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

O Supremo Tribunal Federal já tem maioria para, na prática, afirmar que as universidades têm autonomia ma non tropo. Em julgamento realizado em plenário virtual, iniciado no último dia 24 e que tem até o início de junho para terminar, nove ministros já se mostraram favoráveis à constitucionalidade de um artigo de uma lei de 2013 que restringe a criação de cursos de Medicina, que só podem ser abertos em um processo de chamamento público, e não de acordo com os planos das universidades.

Em 2013, a então presidente Dilma Rousseff criou o programa Mais Médicos. A iniciativa foi vendida como um incentivo à descentralização da oferta de profissionais de medicina, enviando-os para regiões brasileiras carentes de atendimento ou para as periferias dos grandes centros urbanos; na verdade, o Mais Médicos não passava de um enorme esquema de financiamento da ditadura cubana, por meio da exportação de mão de obra forçada, com uma triangulação pela qual os médicos recebiam apenas uma fração da remuneração a que tinham direito. A lei que instituiu o programa, 12.871/13, ainda afirmava, no artigo 3.º, que “a autorização para o funcionamento de curso de graduação em Medicina, por instituição de educação superior privada, será precedida de chamamento público (...)”.

Nove anos depois, enquanto vigorava uma moratória de cinco anos na abertura de novos cursos de Medicina, decidida por Michel Temer em 2018, a disputa chegou ao STF. A ação foi movida pela Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup), que inclui grandes conglomerados privados de educação e defende a manutenção do artigo 3.º da lei dos Mais Médicos, no que tem o apoio do Conselho Federal de Medicina (CFM); do outro lado, o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (Crub) pedia a derrubada do texto, argumentando que ele viola uma série de dispositivos constitucionais, como o direito à livre iniciativa, previsto nos artigos 1.º e 170 da Carta Magna, e a autonomia universitária, que está no artigo 207 da Constituição e segundo o qual “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”. Ora, se uma instituição privada que recebeu do Ministério da Educação o título de universidade ou centro universitário não pode decidir se abre ou não um curso de Medicina, o artigo 207 se torna letra morta.

Mas, ainda que a autonomia universitária não estivesse explicitamente prevista na Constituição, sendo frontalmente violada pela lei do Mais Médicos, restaria uma questão ainda mais importante e ampla, uma questão de princípios envolvendo os direitos ao exercício profissional e à livre iniciativa. Em um país democrático, ambos os direitos devem ser pautados pela ampla liberdade: um indivíduo deveria poder exercer a profissão que bem deseje, e uma entidade privada deveria poder oferecer à sociedade produtos ou serviços lícitos e que essa entidade julgue ser capaz de oferecer – um curso superior, no caso de uma instituição de ensino. É nesse sentido, por exemplo, que consideramos desproporcional a maioria das regulamentações que exigem diplomas de nível médio ou superior, ou tempo comprovado de experiência, para o exercício de várias profissões.

Esta liberdade, no entanto, não é absoluta. Restrições são aceitáveis quando estão em jogo os chamados “bens indisponíveis”: a vida, a saúde, a integridade física e a liberdade. Faz sentido, por exemplo, exigir o diploma de Medicina para o exercício profissional; quem lida com algo tão essencial quanto a vida dos pacientes precisa atestar que passou pela formação teórica e prática que, neste caso, só um curso superior pode lhe oferecer, separando o médico formado dos charlatães. A exigência do diploma não impede o erro médico, mas reduz as chances de que aconteça, e mesmo os profissionais negligentes podem acabar punidos e perder o direito de atuar na área.

Mas a razoabilidade da exigência do diploma de Medicina não tem relação alguma com restrições à abertura de novos cursos. Se o objetivo é garantir que o país tenha uma oferta sólida de profissionais egressos de boas instituições, não é preciso atropelar a livre iniciativa e impedir que uma universidade abra um curso de Medicina se julgar ter corpo docente e infraestrutura para tal; basta fiscalizar com rigor as faculdades, já que o MEC tem a autoridade para fechar cursos que não cumpram padrões mínimos de qualidade. Da mesma forma, considerações envolvendo excesso ou falta de determinados cursos em determinadas regiões jamais deveriam ser determinantes; o poder público poderia até incentivar a migração de médicos para regiões mais pobres ou remotas, ou fomentar a abertura de cursos nesses locais, mas nunca atuar pelo lado da restrição.

Nem a previsão explícita da autonomia universitária na Constituição, nem o fato de a lei do Mais Médicos impor uma restrição desproporcional, nem a defesa da livre iniciativa, no entanto, convenceram o Supremo. Todos os nove ministros que já votaram até o fim da tarde desta segunda-feira seguiram o relator Gilmar Mendes quanto à constitucionalidade do artigo 3.º da Lei 12.871; as divergências dizem respeito apenas aos casos de universidades e centros universitários que conseguiram abrir cursos fora dos chamamentos públicos, amparados em decisões judiciais nas instâncias inferiores – foi exatamente essa judicialização que levou a Anup a buscar o STF, na tentativa de interromper as liminares. Também já existe maioria para manter o processo de autorização dos cursos que já passaram pela análise de documentos do MEC.

Os cursos de Medicina, por razões óbvias, merecem atenção redobrada das autoridades responsáveis por zelar pela qualidade do ensino. Mas as ferramentas para isso já existem, tanto para livrar o país dos maus profissionais quanto dos maus cursos, carentes de bons professores ou da infraestrutura mínima para a formação dos futuros médicos. Infelizmente, o STF optou por ignorar a Constituição, a livre iniciativa e a autonomia universitária, em uma decisão que acaba apenas fomentando uma reserva de mercado enquanto ignora direitos básicos – inclusive os da população carente de atendimento médico.

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