O senso de urgência falou alto no Supremo Tribunal Federal, que levou apenas dois dias para concluir o julgamento das ações a respeito da possibilidade de vacinação compulsória contra a Covid-19. A corte havia sido chamada a responder a duas questões: a Constituição permite que o poder público obrigue os cidadãos a se vacinar? E, se essa obrigação for amparada pela Carta Magna, quem poderia fazer essa imposição no caso da Covid-19: apenas a União, ou também os estados e municípios? Ao menos desta vez, uma corte que muitas vezes cai na tentação de invencionices se ateve ao que efetivamente está na lei.
A primeira pergunta, sobre a possibilidade de haver vacinação obrigatória, recebeu resposta afirmativa de dez ministros, e aqui vale uma ressalva importante: ao contrário do que acabou sendo divulgado em muitos lugares, o STF não decidiu que a vacinação contra a Covid-19 deveria ser obrigatória. O que os ministros disseram foi que, se assim o desejarem, as autoridades poderão estabelecer a vacinação obrigatória contra o coronavírus; no entanto, se preferirem, também terão a opção de manter a adesão voluntária à imunização.
O julgamento encerrado na quinta-feira não esgota o tema. Permanecem questões em aberto, e que provavelmente só chegarão à corte quando a vacinação efetivamente começar
O relator, ministro Ricardo Lewandowski, lembrou que desde a década de 70 do século passado a possibilidade de vacinação obrigatória está consagrada na legislação. A Lei 6.259/75 afirma, no artigo 3.º, que “cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório”, ou seja, a noção de que há vacinas cuja aplicação é obrigatória já está bastante cristalizada no ordenamento jurídico e no costume nacional, tanto que o Programa Nacional de Imunizações nunca foi alvo de “contestações judiciais significativas”, para usar a expressão de Lewandowski – não passou despercebido do relator o fato de que o PTB, autor da ação que contestava a possibilidade da vacinação compulsória, tentou derrubar essa possibilidade apenas no caso da Covid-19, deixando intactas todas as demais leis e portarias que tratam da obrigatoriedade de outras vacinas.
Os mesmos dez ministros que votaram pela constitucionalidade da vacinação obrigatória também avaliaram que estados e municípios teriam o direito de adotar essa medida. Prevaleceu, novamente, o relatório de Lewandowski, apoiado na leitura da Lei 13.979/2020, que incluiu a “determinação de realização compulsória de: (...) vacinação e outras medidas profiláticas” entre as medidas que estados e municípios podiam tomar para combater o coronavírus – a possibilidade se encaixaria nos dispositivos constitucionais (como os artigos 23 e 24 da Carta Magna) que estabelecem competência conjunta de União, estados e municípios em questões ligadas à saúde.
A tese vencedora, no entanto, traz consigo uma série de ressalvas, já previstas no voto do relator. Lewandowski lembrou que a própria Lei 13.979 impõe algumas condições para que as autoridades implantem medidas de combate ao coronavírus. Além disso, em hipótese alguma uma pessoa poderá ser coagida a se vacinar, pois vacinação compulsória não é sinônimo de vacinação forçada; o relator lembrou que na Revolta da Vacina, em 1904, o descontentamento popular foi agravado justamente porque o poder público recorreu a medidas como invasão de residências. No entanto, os ministros admitiram que, nos locais onde houver vacinação obrigatória, quem se recusar pode estar sujeito às chamadas “restrições civis”, definidas por Lewandowski como “vedações ao exercício de determinadas atividades ou à frequência de certos locais”. Esse tipo de punição já existe em relação ao calendário nacional de vacinação – por exemplo, a proibição de receber benefícios do governo ou de matricular crianças que não estejam com as vacinas em dia. No caso da Covid-19, será preciso que as Assembleias Legislativas ou Câmaras de Vereadores daqueles estados ou municípios onde a vacinação for obrigatória aprovem leis com as restrições aplicadas a quem não quiser se imunizar.
Atendo-se ao texto da lei, o Supremo evitou excessos – teria sido absurdo, por exemplo, que a corte decidisse por conta própria que a vacinação contra o coronavírus fosse obrigatória no país, tomando para si uma decisão que caberia apenas ao Poder Executivo. Mas o julgamento encerrado na quinta-feira não esgota o tema. Permanecem questões em aberto, e que provavelmente só chegarão à corte quando a vacinação efetivamente começar. Será aceita a objeção de consciência caso alguém que defenda a vida desde a concepção se recuse a tomar a vacina, se as únicas opções disponíveis forem imunizantes cujo desenvolvimento incluiu o uso de linhagens celulares provenientes de fetos abortados? Qual será o limite das “restrições civis”, em termos de direitos que podem ou não ser afetados?
Num cenário ideal, toda a discussão sobre obrigatoriedade nem seria necessária: a população buscaria a vacina de livre e espontânea vontade, em quantidade suficiente para garantir que o vírus já não conseguisse se propagar em uma localidade. No entanto, talvez isso não ocorra no caso da Covid-19, tamanhos os questionamentos – fundados ou não – a respeito das vacinas que vêm sendo desenvolvidas. Neste cenário, a decisão do Supremo vem para dar respaldo às autoridades que julgarem necessário adotar medidas mais severas para livrar suas cidades ou estados da pandemia, já que, pelas indicações do presidente Jair Bolsonaro, não haverá obrigatoriedade em nível nacional. Que cada gestor saiba tomar a melhor decisão para que possamos, o quanto antes, vencer o coronavírus definitivamente.