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A sede da Suprema Corte norte-americana, em foto do fim de junho de 2023.
A sede da Suprema Corte norte-americana, em foto do fim de junho de 2023.| Foto: Shawn Thew/EFE/EPA

Enquanto no Brasil a cúpula do Judiciário contribui para o apagão da liberdade de expressão, promovendo confusões conceituais e partindo para a criminalização indiscriminada de uma série de discursos que não deveriam estar sujeitos a restrições legais, uma outra corte constitucional dá um passo importante para proteger a liberdade de expressão. Em 303 Creative LLC v Elenis, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou que o Estado não pode coagir nenhum prestador de serviço a usar seu talento artístico a serviço de ideias das quais discorde, e que tais prestadores têm direito a ter e manifestar suas convicções por meio de seu trabalho.

A webdesigner Lorie Smith, dona da 303 Creative LLC, pretendia expandir seu ramo de atuação para criar sites personalizados de casamentos, mas tinha uma preocupação: ela, para quem o casamento é unicamente entre um homem e uma mulher, não queria ser forçada a criar sites de uniões homoafetivas, das quais ela discordava. Vivendo no Colorado, estado que já perseguiu o confeiteiro Jack Phillips por ter se negado a preparar um bolo personalizado para dois homossexuais que iriam se casar, Smith resolveu agir antes que algo semelhante acontecesse a ela, e foi à Justiça para garantir seu direito à objeção de consciência. Ela perdeu nas duas primeiras instâncias, mas levou o caso à Suprema Corte, que concordou em analisar o tema, resultando na decisão publicada no fim de junho.

Por seis votos a três, a corte decidiu que Smith tem o direito de se recusar a criar sites personalizados que celebrem uma união homoafetiva, e que as leis do Colorado não podem nem forçá-la a aceitar a encomenda, nem puni-la pela recusa. O voto da maioria, redigido pelo justice Neil Gorsuch, tem uma característica muito interessante: ainda que Smith tenha citado a “verdade bíblica” como fundamento para classificar o tipo de que conteúdo que ela poderia se recusar a produzir, a discussão não versou em nenhum momento sobre a liberdade religiosa, mas sobre a liberdade de expressão – o que não deixa de ser providencial, pois permitiu aos magistrados da Suprema Corte estabelecer com muita precisão limites que podem e devem ser observados pelo Estado ao lidar com todos os cidadãos, sobre todos os tipos de discurso, e não apenas aqueles que têm caráter religioso.

Ninguém está autorizado a rejeitar clientes pelo que eles são, mas da mesma forma ninguém é obrigado a endossar ou prestigiar, com seu trabalho, atitudes e ideias das quais discorde

Quando Lorie Smith cria um site, afirmaram os justices, ela expressa o seu pensamento por meio do seu trabalho criativo, ainda que em conjunto com os noivos que contrataram o serviço da designer. Não se trata de um simples produto padronizado, mas de discurso abrangido pela Primeira Emenda, que, dizem os magistrados, “protege o direito de um indivíduo a dizer o que pensa independentemente de o governo considerar seu discurso sensato, bem-intencionado ou profundamente equivocado”. Mas não apenas isso: a Constituição norte-americana, continuam os justices, protege as pessoas de um outro tipo de coerção estatal diverso da censura: elas também não podem ser obrigadas a manifestar algo de que discordam. Na lógica do Colorado e dos juízes de primeira e segunda instância que negaram o pedido de Smith, “se ela quer se pronunciar, ela deve ou se pronunciar da forma como o Estado quer ou sofrer punições por manifestar suas próprias convicções, punições que podem incluir participação compulsória em ‘treinamento (...) corretivo’, preenchimento de relatórios periódicos e pagamento de multas. Isso é uma restrição inaceitável ao direito de falar livremente, estabelecido pela Primeira Emenda”, diz a decisão.

Esse tipo de lógica, que o estado do Colorado pretende impor com o Colorado Anti-Discrimination Act, levada às últimas consequências, poderia “permitir ao governo forçar todo tipo de artistas, redatores e outros cujos serviços envolvem discurso a dizer algo em que não acreditam ou sofrerem punições”, algo que a Primeira Emenda não tolera. “O governo poderia exigir que um diretor de cinema muçulmano faça, contra sua vontade, um filme com uma mensagem sionista, ou que um muralista ateu aceite uma encomenda que celebre o zelo evangélico, caso eles também façam filmes ou murais para outras pessoas com mensagens diversas”, como afirmou um dos juízes de segunda instância que divergiram da maioria no caso de Smith. Da mesma forma, “o governo poderia forçar um webdesigner casado com outro homem a criar um site para uma organização que combate o casamento entre pessoas do mesmo sexo”, acrescentam os justices, para quem essa política teria uma consequência nefasta: forçar quem realiza trabalho criativo a escolher entre abandonar seu ramo para não ter de endossar ideias das quais discorda, ou enfrentar o braço da lei por defender suas convicções.

A Suprema Corte reconhece o valor das leis que buscam combater a discriminação e incluem dispositivos que regulam a venda de produtos e oferta de serviços de forma que um negócio não possa recusar clientes baseando-se em características pessoais. Mas tanto Smith quanto a corte ressaltam que não é isso que está em jogo. A designer deixa claro que não discrimina nenhum cliente com base em cor da pele, religião, orientação sexual ou gênero, e que não vê problema algum em criar sites para pessoas de qualquer orientação sexual – por exemplo, o site de um advogado ou médico homossexual. Negar o serviço nesses casos, sim, constituiria discriminação injusta, sujeita a punição legal; e é significativo, aliás, que no caso do confeiteiro Phillips ele tenha apenas se recusado a produzir um bolo de casamento personalizado, mas não se furtou a oferecer bolos já prontos aos noivos, que inclusive já tinham adquirido produtos da Masterpiece Cakeshop, a loja de Phillips. A linha divisória está no fato de o Estado pretender forçar alguém a violar as próprias convicções, e Smith ressalta que jamais realizou trabalhos que tivessem essa característica, independentemente de quem os solicitasse.

303 Creative LLC v Elenis é um grande avanço sobre Masterpiece Cakeshop v Colorado Civil Rights Commission. A decisão de 2018 apenas atestava que o estado do Colorado havia avançado indevidamente sobre a liberdade religiosa do confeiteiro Phillips, e que ele podia voltar a trabalhar de acordo com suas convicções, mas não respondia à pergunta principal: “o Estado pode forçar alguém que fornece seus próprios serviços discursivos a abandonar sua consciência e, em vez disso, manifestar a mensagem que o Estado prefere?” Essa falha havia sido apontada já em 2018 pelo justice Clarence Thomas, e fica sanada agora. Ela estabelece um equilíbrio saudável entre o necessário combate à discriminação e o respeito à liberdade de expressão e à objeção de consciência. Ninguém está autorizado a rejeitar clientes pelo que eles são, mas da mesma forma ninguém é obrigado a endossar ou prestigiar, com seu trabalho, atitudes e ideias das quais discorde.

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