Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu um recado para todos os brasileiros preocupados com os rumos da Operação Lava Jato. Por 2 votos a 1, a segunda turma do tribunal decidiu excluir a delação premiada do ex-ministro Antonio Luiz Palloci dos autos de um processo contra o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT).
A votação foi marcada pela ausência de dois ministros, Celso de Mello e Rosa Weber. Assim, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes formaram maioria contra Edson Fachin, relator da Lava Jato, que foi voto vencido. Os dois ministros acataram o argumento da defesa do ex-presidente, que contestou a condução do processo pelo então juiz Sergio Moro, que incluiu as acusações feitas por Palocci depois do encerramento da fase de coleta de provas. Segundo eles, o fato de a delação ter sido incluída de ofício no processo, isto é, sem a provocação de ninguém, a seis dias do primeiro turno das eleições de 2018 comprovaria que o juiz teria quebrado a imparcialidade e violado o sistema acusatório. “Essas circunstâncias, quando examinadas de maneira holística, são vetores possivelmente indicativos da quebra da imparcialidade por parte do magistrado”, disse Mendes durante sua fala.
A nota enviada por Moro ao Estadão sobre o caso fala por si só. O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública afirmou que a delação não trazia nada de novo, já que Palocci havia prestado depoimento público anteriormente a respeito de fatos envolvendo Lula. A inclusão, em sentido contrário ao afirmado pelos dois ministros, teria visado a “garantia da ampla defesa, dando ciência de elementos que eram relevantes para o caso e ainda não haviam sido juntados aos autos”. Ainda complementou explicando que não tinha sequer proferido sentença na ação penal na qual houve a inclusão da delação. Na verdade, Lula só tinha sido então condenado por Moro no caso do triplex do Guarujá, em julho de 2017, numa sentença confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região e pelo Superior Tribunal de Justiça.
Dessa forma, a decisão dos ministros embaralha fatos desconexos no tempo, numa interpretação elástica da jurisprudência estabelecida. É como se quaisquer decisões tomadas a posteriori pelo ex-juiz na sua carreira colocassem em suspeição todos os seus atos passados, numa análise retroativa, o que iria na contramão do entendimento comum a respeito de suspeições, que devem ser declaradas contemporaneamente às decisões. As causas da suspeição estão previstas nos artigos 134 a 138 do Código de Processo Penal (CPC). Nenhuma delas prevê que a indicação posterior do magistrado para ministro por um dos candidatos envolvidos no pleito reputa fundada a suspeição, ainda mais na ausência de qualquer indício de que isso tenha sido objeto de negociação entre as partes anteriormente à decisão do então juiz. Uma interpretação demasiado elástica que vê nisso evidência de suspeição poderia servir para comprometer a atuação de bem mais de um juiz, em bem mais de um caso, ainda mais se feita a posteriori, tornando o processo penal marcado pela insegurança e por uma possibilidade de revisão permanente, sempre em cima das ilações mais irresponsáveis.
Afinal, caberia perguntar se o mesmo critério não poderia ser aplicado aos ministros em questão. Ou o ministro Lewandowski não foi indicado para ocupar uma cadeira no STF pelo ex-presidente Lula, justamente o maior beneficiado pela decisão dessa semana? Esse relacionamento remoto entre as duas personagens justifica um voto de suspeição? Difícil afirmar pela jurisprudência estabelecida, mas não pelo critério elástico utilizado pelos dois ministros para julgar a suspeição de Moro no caso. A mesma régua poderia comprometer a posição do presidente do tribunal, Dias Toffoli, pela sua atuação no passado como advogado do PT, em ações que envolvessem políticos do partido. Ou a do ministro Gilmar Mendes, pelas próprias declarações públicas que tem dado nos últimos anos a respeito da Operação Lava Jato.
Ademais, cumpre ter em vista alguns elementos que parecem não estar sendo levados em consideração. Primeiro, Lula sequer figurava como candidato às vésperas do pleito. Ao contrário, tinha tido sua candidatura invalidada exatamente devido à condenação em segunda instância no supracitado processo do triplex do Guarujá. Influência pública num processo eleitoral jamais pode servir de blindagem contra a atuação do sistema de justiça criminal.
Segundo, o funcionamento desse mesmo sistema não pode estar atrelado de forma alguma ao calendário eleitoral. Não existe qualquer dispositivo jurídico que preveja período de imunidade para investigados pela Justiça. Caso contrário, isso significaria que, de dois em dois anos, nenhum político poderia ser objeto de persecução ou condenação criminal, sob risco de evidenciar parcialidade do magistrado envolvido no processo. Por mais esdrúxulo que o argumento possa parecer, é importante saber que precedentes são utilizados o tempo inteiro no Direito. É só recordar casos recentes que se inspiraram em decisões jurídicas equivocadas, como no pedido feito pela Câmara no final de julho para que apartamentos funcionais e residências de parlamentares não possam ser alvos de busca e apreensão sem autorização do STF, mesmo que em investigações que não digam respeito a crimes ocorridos durante o mandato.
Para além dos equívocos cometidos pelos ministros na votação, a decisão da segunda turma é preocupante, pois indica o que pode vir mais para frente. Ela deve servir de indicativo para que outros condenados aleguem a suspeição de Moro em outros processos, o que pode resultar na anulação de várias condenações e num retrocesso inimaginável do combate à corrupção, a despeito da grande quantidade de provas, evidências e depoimentos que o fundamentam. É importante que fique claro: a declaração de suspeição do ex-juiz sem nenhuma evidência real, em cima de uma interpretação elástica como a que foi utilizada na decisão dessa semana, colocaria, ao contrário, em suspeição a instância mais alta do Poder Judiciário brasileiro.
Tendo em vista o contexto mais geral de investidas contra a operação Lava Jato nos últimos meses, cresce ainda mais o clima de insegurança jurídica e a desconfiança dos cidadãos. Ainda que um consenso institucional muito pouco alvissareiro pareça estar se formando entre diversos atores contra as conquistas na luta contra a corrupção dos últimos anos, é preciso ter em mente que isso passa longe da vontade geral da sociedade. As instituições brasileiras não têm gordura para queimar em termos de perda de credibilidade. Em um contexto marcado pela polarização política, esse é mais um ataque preocupante à democracia.