Passeios ruins são a melhor tradução para o pouco valor dado aos pedestres

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Os moradores das cidades andam cada vez menos a pé. Preferem os automóveis ao transporte coletivo. E essas duas afirmações azeitadas no lugar comum podem ser aferidas em pesquisas da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP) – como a publicada na Gazeta do Povo no dia 19 –, o que nos faz crer que não se trata de uma mera impressão. O preço dessa mudança de hábito também é cantado em verso e prosa. Afeta o meio ambiente. A convivência. O efeito mais nocivo, concorda-se, é que, com menos gente nas ruas, menor a sensação de segurança. A degradação urbana vem em seguida, a galope.

"Água mole em pedra dura...". A difícil equação das cidades é repetida à exaustão. Mesmo assim, entende-se, deve-se continuar insistindo na máxima de que cidade é sinônimo de calçada, para que se possa andar, e não de vias cada vez mais largas para automóveis. Uma hora as pessoas se convencem, calçam o tênis.

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Mas também há o perigo de que, de tanto repetir a mesma ladainha, os ouvidos se fechem, domesticados e passivos. Incorremos, sim, no risco de admitir a corrosão da mobilidade nos grandes centros, mas de assimilá-la como um mal para o qual não há remédio: poucos trocarão o conforto do veículo próprio pela condução lotada ou pela calçada em petição de miséria. Além do mais, parece tão longe quanto as excursões a Marte o dia em que teremos no Brasil o modelo das grandes metrópoles europeias e americanas, nas quais muitos se mudam para perto do trabalho e transformam as próprias pernas em condução. É mau negócio, contudo, achar que o país não pode se equiparar a outras cidades, mais cosmopolitas, desenvolvendo suas receitas caseiras para os impasses urbanos.

A literatura especializada sobre as cidades está cheia do elogio ao passeio dos caminhantes e ao lugar de honra que ocupa na consolidação da urbe. É nesse espaço que se realiza o destino urbano. Mas é uma ideia que resiste em "colar" no imaginário nacional. As razões são simples de listar. Temos uma relação cultural obtusa com o espaço público, como descreveu tão bem o sociólogo Roberto DaMatta em A casa e a rua. As calçadas brasileiras traduzem esse conflito, a cada buraco, a cada pá de cimento mal-ajambrada. Nossas calçadas, grosso modo, são para pedestres, que são simbolicamente os mais pobres, ainda que ninguém admita isso em alto e bom som. Andar, para muitos, só se for em Paris. Talvez venha daí a conotação dúbia da palavra "pedestre" e a enorme invisibilidade de que goza. Ora, quem de nós não se viu um dia agredido por um motorista de automóvel? O pedestre é aquele que tem de correr do carro, do ladrão, do cachorro e se virar para tirar o pé das crateras com as quais tem de lidar, sem as glórias de um Neil Armstrong.

Como espaço do pedestre, a calçada, por extensão, recebe o mesmo tratamento destinado a seu usuário. É lugar menos importante. Verdade que, de resto, poderia nos levar a uma sociologia das calçadas. Há lugares em que são uma extensão da casa, com material escolhido pelo morador e, por isso, lavadas todos os sábados. Podem até ser bonitas, mas não formam um conjunto: existem para combinar com o muro. As calçadas de Curitiba, nesse catálogo, ocupam um lugar particular. São homogêneas, feitas com pedras das pedreiras próximas, o que lhes garante boa aparência, sempre destacada pelos turistas, que vão fotografá-las e se mandar. Mas não foram feitas para andar – como bem já destacou até um irado Dalton Trevisan em sua obra.

O problema estaria em via de se resolver – a calçada marca registrada da capital paranaense está dando lugar a um modelo mais poroso e frágil, em oposição à rudeza de antanho. Mas arrisca que, mesmo com a mudança, não se esteja entrando na "era das calçadas". Permanecemos longe das confrarias de calceteiros lusitanos, que formam artesãos aptos a manter viva a tradição da pedra portuguesa. A calçada deve ser importante para eles. Não é para nós. Mudar a calçada é fácil, o mesmo não se diga da cultura. Nesses tristes trópicos, o passeio permanece o espaço de gente não motorizada, exótica, suspeita ou em companhia do cachorro.

Sabe-se como é que se vira esse disco – assim como andar de bicicleta e pegar ônibus, nossos gestores deveriam andar nas calçadas. Descobririam coisas interessantes: trata-se de um dos piores serviços públicos de que se tem notícia. Mal ajustadas, acumulam água, avariam os saltos, acabam com a paciência de quem decidiu viver essa experiência de civilidade. Se o usuário tiver mais de 60 anos, então, nem dizer: vai preferir o risco de morrer no asfalto.

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A questão é ainda mais bizarra. Fica a dúvida se uma manutenção adequada não seria o bastante para permanecermos com as velhas calçadas. Há lugares da cidade onde, bem assentadas, as pedras que viraram marca registrada de Curitiba se prestam inclusive aos cadeirantes. Mas a manutenção das calçadas não está entre as glórias da capital paranaense. E isso vale para os bloquinhos de cimento de agora: onde tiveram de ser recolocados, não raro, já vieram com serviço de segunda mão. O risco de estarmos vivendo uma repetição da mesma história é flagrante.