Uma das chaves do sucesso – e talvez o fator fundamental – dos países que conseguiram conter o avanço inicial do coronavírus antes que a pandemia se tornasse uma tragédia de grandes proporções foi a testagem em massa. Assim que um caso era identificado, as autoridades sanitárias procuravam todos os que haviam tido contato recente com o paciente e, se possível, pessoas que tivessem frequentado os mesmos ambientes ao mesmo tempo, para testá-las todas e identificar novas contaminações o quanto antes. Quanto mais um país testa suas pessoas, menor a taxa de resultados positivos – um paradoxo que é apenas aparente, pois testar toda a cadeia de contatos de um doente, tenham ou não os sintomas da Covid-19, invariavelmente resultará em uma boa quantidade de negativos, uma certeza que seria impossível obter se essas pessoas não tivessem sido testadas.
O Brasil ficou para trás neste quesito, o que ajuda a explicar as dimensões que a pandemia tomou por aqui. A taxa de testes RT-PCR (aqueles que detectam a presença do vírus no organismo) positivos é de 30%, muito acima dos 5% que apontam para uma boa política de testagem. Em um país de quase 200 milhões de pessoas, o Sistema Único de Saúde realizou apenas 5 milhões de testes desse tipo desde que o coronavírus chegou por aqui. Mas esse número poderia ter sido pelo menos dobrado. Reportagem do jornal O Estado de S.Paulo mostrou que há quase 7 milhões de testes RT-PCR estocados em um armazém do governo federal em Guarulhos (SP), e quase todos perderão a validade em janeiro do ano que vem.
O governo federal era o único a poder assumir um papel de coordenação de esforços em nível nacional, mas abriu mão desse papel e empurra a responsabilidade sempre que há problemas
O RT-PCR é o melhor teste para se estabelecer uma boa política de contenção do coronavírus. É confiável, preciso e identifica a doença ainda em andamento, ao contrário do teste sorológico rápido, que detecta a presença de anticorpos, ou seja, mostra que a pessoa já esteve doente, mas não indica quando isso ocorreu, por exemplo. Este fato mostra como é ainda mais grave o potencial desperdício em curso. No nível micro, sem uma testagem mais ampla de contatos (ainda que não seja factível seguir modelos como o sul-coreano ou o de Cingapura), é mais difícil parar a cadeia de contágios quando um caso é detectado; no nível macro, a falta de dados resultante de uma política capenga de testagem impede cidades e estados de avaliar corretamente o comportamento do vírus. Referimo-nos, aqui, à possibilidade de realizar testes por amostragem em vários locais e entre vários segmentos da população, o que geraria uma grande quantidade de informação valiosa para direcionar políticas públicas de combate ao coronavírus.
Os 7 milhões de testes guardados em Guarulhos ainda provam algo que já era evidente praticamente desde o início da pandemia. União, estados e municípios não souberam estabelecer uma cooperação adequada, muitas vezes limitando-se a brigar por mais poderes e a empurrar para os outros entes a responsabilidade quando algo sai errado. É o que está ocorrendo mais uma vez. E, por mais que haja interesses políticos e eleitorais se aproveitando da pandemia em todas as esferas de governo, a responsabilidade maior recai sobre os ombros do governo federal, que era o único a poder assumir um papel de coordenação de esforços em nível nacional, mas abriu mão desse papel. O Ministério da Saúde novamente lava as mãos quando limita-se a dizer que seu papel é apenas o de adquirir os testes, e que os repassa quando estados e municípios pedem. As alegações de governadores, prefeitos e secretários de Saúde reforçam a percepção de que algo vai mal em Brasília: segundo eles, os kits enviados pelo governo federal vêm incompletos, com falta de reagentes ou cotonetes coletores. O conselho de secretários estaduais de Saúde afirma, ainda, que o Ministério da Saúde cancelou um contrato que previa a aquisição desses insumos e de equipamentos para processar as amostras recolhidas.
Independentemente de quem sejam os culpados, é a população que perde com tantos erros de gestão e coordenação. Casos de Covid-19 que terminaram em morte por serem tardiamente identificados poderiam ter sido descobertos no início, aumentando as chances de sucesso no tratamento. Surtos poderiam ter sido evitados. Medidas restritivas poderiam ter sido melhor direcionadas, reduzindo o impacto sobre os negócios. Testagens amplas por amostragem poderiam ajudar governos a priorizar determinadas áreas ou grupos populacionais. Nada disso ocorreu, e tudo indica que não haverá um esforço concentrado para usar em tempo hábil esses 7 milhões de testes estocados, investindo-os, por exemplo, em uma testagem massiva nos locais onde a doença voltou a se espalhar após o recuo da primavera. A única reação do Ministério da Saúde, até agora, foi consultar o fabricante a respeito de uma possível extensão do prazo de validade. É inaceitável que, apesar da comprovação irrefutável dos benefícios de uma política ampla de testes, as autoridades sanitárias brasileiras permitam tamanho descaso e desperdício.
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