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Editorial

“Dr. Fantástico” no Supremo

Alexandre de Moraes e Dias Toffoli.
Os ministros do STF Alexandre de Moraes e Dias Toffoli. (Foto: )

A Procuradoria-Geral da República enviou ao Supremo Tribunal Federal um recurso que pode ser resumido em uma pergunta simples: o que está valendo no Brasil, a lei processual ou a vontade incontestável dos ministros do STF? A procuradora-geral interina, Elizeta Ramos, e a vice-procuradora-geral Ana Borges Coêlho acionaram o Supremo para contestar a mais nova aberração jurídica promovida pelo relator Dias Toffoli em um inquérito que já está repleto de características muito incomuns: a investigação sobre a suposta agressão ao ministro Alexandre de Moraes no aeroporto de Roma. Moraes e sua família foram aceitos como assistentes de acusação na sexta-feira, dia 27.

A irregularidade não está exatamente no fato de que a vítima figure em um processo como assistente de acusação – esta hipótese está prevista nos artigos 268 a 273 do Código de Processo Penal. O que torna ilegal a decisão de Dias Toffoli é o fato de que, segundo o CPP, o assistente de acusação só pode entrar em cena a partir do momento em que há uma ação penal em curso – ou seja, depois que o Ministério Público tenha oferecido a denúncia, e que esta denúncia tenha sido aceita pela Justiça. Obviamente, este não é o caso em tela, pois todo o episódio do aeroporto ainda está em uma fase anterior, a da investigação, na qual não se admite a presença da figura ora atribuída por Toffoli a Moraes e sua família. Afinal, como seria possível haver um assistente de acusação se ainda nem chegou a haver acusação? Como se não bastasse, o artigo 272 ainda prevê que “o Ministério Público será ouvido previamente sobre a admissão do assistente”, o que não ocorreu.

Depois de já terem assumido o papel de vítimas, investigadores, acusadores e julgadores, agora o STF e seus ministros acrescentam o de “assistente de acusação extemporâneo”

Este não é o único ponto questionado no recurso da PGR, que tenta reverter outra atitude escandalosa de Toffoli: os enormes obstáculos impostos por ele para que a defesa de Alex Zanata e do casal Roberto Mantovani e Andreia Munarão tenha acesso aos vídeos do aeroporto, enviados pela Justiça italiana e que continuam sob sigilo, apesar dos pedidos não só da defesa, mas também da Ordem dos Advogados do Brasil. O advogado do trio pode até assistir às imagens, mas em local específico e sem poder fazer cópias que a defesa poderia encaminhar a uma perícia. Com isso, prevalece apenas a versão da Polícia Federal em um relatório tão inconsistente quanto subjetivo, no qual aparecem apenas imagens congeladas e a interpretação bastante parcial do responsável pelo texto.

A esse respeito, é preciso lembrar que, mesmo com toda a tentativa de se controlar a narrativa em benefício de Moraes e contra os investigados, a versão “oficial” começa a apresentar furos. A análise da polícia italiana chegou a conclusões diferentes daquelas da PF, e o presidente da Associação dos Peritos Criminais Federais (APCF), Willy Hauffe Neto, apontou vários problemas no procedimento adotado pela PF, a começar pelo fato de a análise do vídeo ter sido feita por um agente, e não por um perito. Em vez de responder às objeções de forma técnica, a PF partiu para a retaliação: a corregedoria do órgão abriu processo disciplinar contra Hauffe e, de acordo com a revista Veja, o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, teria reclamado que os peritos estariam colaborando para a “defesa dos agressores”. O palavreado, além de mostrar uma absurda falta de isenção da parte do órgão responsável pela investigação, deixa subentendido que, no fim das contas, o veredito já está dado. Nada muito diferente, aliás, do que vem ocorrendo nos julgamentos do 8 de janeiro, onde o mero fato de estar na Praça dos Três Poderes tem bastado para que os réus sejam condenados a penas que ultrapassam os 15 anos de prisão, independentemente de qualquer outra circunstância, já que a individualização da conduta se tornou algo dispensável.

No clássico Dr. Fantástico, de 1964, o ator Peter Sellers interpreta três papéis: o personagem-título, o presidente dos Estados Unidos, e um oficial britânico que tenta impedir um ataque nuclear norte-americano contra a União Soviética – um quarto papel chegou a ser escrito com o ator em mente, mas Sellers não chegou a interpretá-lo alegando cansaço e uma contusão. Já no STF de 2023 este cansaço não existe; a corte e seus ministros assumem tranquilamente o papel de vítimas, investigadores, acusadores e julgadores, agora acrescentando o de “assistente de acusação extemporâneo”. Fazem-no ao arrepio da lei, que jamais permitiu este acúmulo de funções, e com isso devastam o devido processo legal e o direito à ampla defesa como a guerra atômica devasta o mundo na sátira de Stanley Kubrick – a diferença é que a ficção ao menos faz rir, enquanto a realidade não tem a menor graça.

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