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Editorial

Tolerância e liberdade de expressão

Na terça-feira, o Tribunal de Justiça de São Paulo proibiu o YouTube de exibir no Brasil o filme A Inocência dos Muçulmanos, a pedido de uma entidade islâmica. Tanto a decisão judicial quanto a violenta (e condenável) reação, em diversos países, ao vídeo e à veiculação de charges retratando Maomé na revista francesa Charlie Hebdo exigem uma reflexão sobre a liberdade de expressão: esse princípio basilar das democracias pode justificar manifestações como o filme ou as charges? Ou haveria limites a essa liberdade – e, nesse caso, que critérios balizariam possíveis restrições?

Não é mera coincidência o fato de que o filme tenha surgido nos Estados Unidos, país em que a liberdade de expressão tem contornos praticamente absolutos, permitindo inclusive ofensas ao sentimento religioso da população ou de grupos religiosos minoritários. No entanto, a maioria das democracias maduras do Ocidente não tem o mesmo entendimento, estabelecendo diversos tipos de restrição e criminalizando manifestações ofensivas à religião. Também esta Gazeta do Povo entende que a liberdade de expressão, embora essencial na construção e manutenção de uma sociedade livre e democrática, não é absoluta, e as ofensas à religião oferecem uma oportunidade de examinar em que grau pode haver exceções a esse princípio.

Países como Alemanha e Portugal, por exemplo, criminalizam ofensas de cunho religioso que tenham o potencial de causar perturbação à paz pública. Esta noção é herdeira direta do pensamento político que considera, do ponto de vista prático e da política pública, a paz como um bem antecedente ao da religião e colocou fim às guerras religiosas que afligiram a Europa nos séculos 16 e 17. Este critério, apesar de útil para coibir ofensas que podem levar a tumultos como os observados atualmente, causa uma distorção. Sabe-se que seguidores de determinadas crenças, quando ofendidos, são mais propensos a recorrer à violência que outros grupos religiosos. Quando da exibição dos filmes Je vous salue, Marie ou A última tentação de Cristo, ou da constante ridicularização das religiões afro-brasileiras em programas televisivos evangélicos, não se viu, por parte dos ofendidos, ainda que comprometidos com sua crença, uma resposta violenta como a provocada atualmente no mundo islâmico – violência condenável sob todos os aspectos, repetimos. Assim, quando o critério é o potencial de perturbação da paz pública, indiretamente se passa a mensagem de que ofensas às religiões cujos seguidores são mais pacíficos seriam mais aceitáveis que ataques a crenças cujos fiéis historicamente reagem com violência. Avaliar o potencial de desestabilização da sociedade é um bom parâmetro para analisar a conveniência de certas manifestações, mas não pode ser o único.

A legislação brasileira, por sua vez, observa mais o conteúdo em si que suas possíveis consequências. O atual Código Penal, em seu artigo 208, considera crime "escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso". Ressalta-se que não se trata de impedir toda e qualquer crítica às religiões, às instituições religiosas, seus líderes ou suas crenças, mas apenas as manifestações que têm como objetivo o escárnio e o deboche dirigidos aos objetos e personagens venerados como sagrados pelos fiéis. Este modelo – que justifica a acertada decisão do TJ paulista – nos parece mais adequado que as legislações que usam a possível perturbação da paz pública como critério.

Também é preciso lembrar que reconhecer a religião como um valor da sociedade em nada prejudica a laicidade do Estado, pois não constitui endosso ou proteção especial a nenhuma crença. Essa restrição a um pilar da democracia, a liberdade de expressão, é feita em nome de outro princípio democrático, o da tolerância. É justamente para preservá-la que muitas das democracias ocidentais considerariam A inocência dos muçulmanos ilegal. Acima das leis, inclusive, deveria figurar o bom senso; não é verdade que "religião não se discute", mas também é perfeitamente possível fazê-lo sem usar recursos que servem mais para exaltar os ânimos que para promover um saudável embate de ideias.

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