O Tribunal de Contas do Estado do Paraná resolveu levar ao extremo sua designação de “tribunal”, e concedeu a si mesmo os mesmos poderes do Judiciário. É a única explicação possível para que o presidente da corte de contas paranaense, Fabio Camargo, tenha expedido medida cautelar na tarde de sexta-feira, dia 19, suspendendo a circulação normal do transporte coletivo em Curitiba a partir da zero hora do sábado, dia 20, com a ressalva de que fosse garantido o transporte aos trabalhadores da área de saúde e serviços auxiliares, bem como as demais atividades consideradas essenciais e que seguem funcionando mesmo durante as restrições da bandeira vermelha. A alegação era a de que a medida contribuiria para impedir a disseminação da Covid-19, neste momento em que o Paraná e Curitiba registram recordes nos números de casos e mortes.
Esse tipo de providência, no entanto, está completamente distante das atribuições legais de um Tribunal de Contas, descritas no artigo 71 da Constituição Federal, no caso do TCU, e no artigo 75 da Constituição do Estado do Paraná. A nulidade de tal ato é tão evidente que, se não tivesse havido uma liminar do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná derrubando o ato do presidente do TCE, não teria sido nada descabido se a prefeitura de Curitiba tivesse simplesmente ignorado a proibição e mantido a frota circulando enquanto esperava o resultado do recurso apresentado.
Restrições como toques de recolher que limitem o deslocamento de pessoas saudáveis, obrigando que elas permaneçam em suas residências, não estão na Lei 13.979
O caso do TCE paranaense, no entanto, é apenas mais um dentro de uma discussão nacional sobre a competência de cada autoridade para decretar determinadas medidas de combate à pandemia de Covid-19. Uma das mais radicais tem sido o toque de recolher – a proibição de circulação em vias públicas a partir de determinado horário, com apenas algumas exceções previstas nos decretos estaduais e municipais que vêm sendo editados neste sentido em todo o Brasil.
O raciocínio por trás dos toques de recolher não é o de simplesmente impedir ocasiões de contato interpessoal que colaborem para a transmissão do vírus, como se o Sars-CoV-2 tivesse hábitos noturnos. Este fator também pesa na decisão; está mais que claro que reduzir as possibilidades de interação entre pessoas freia a disseminação da Covid-19, e que o período noturno tem sido propício a ocasiões como festas clandestinas, que podem se transformar em verdadeiros “covidários”. Mas esta não é a única variável envolvida. Busca-se, também, evitar outras situações, como acidentes automobilísticos graves, que exigiriam o uso de uma rede hospitalar já completamente sobrecarregada com pacientes contaminados. A opção pelo toque de recolher como medida preventiva, portanto, é bastante compreensível; o problema, aqui, é de outra natureza.
Mesmo com a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a autonomia de estados e municípios na tomada de decisões contra a pandemia, é importante que tais decisões estejam amparadas pela legislação; e a Lei 13.979/2020, aprovada há mais de um ano, prevê, no seu artigo 3.º, os tipos de providências que podem ser tomadas por prefeitos e governadores. A única medida relativa ao deslocamento de pessoas está no inciso VI: “restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de: a) entrada e saída do país; e b) locomoção interestadual e intermunicipal”. Não há menção, portanto, a restrições como toques de recolher que limitem o deslocamento de pessoas saudáveis, obrigando que elas permaneçam em suas residências – no caso dos infectados pela Covid-19, evidentemente, a situação é diferente: o isolamento está previsto pela Lei 13.979, e seu descumprimento poderia ser enquadrado no artigo 268 do Código Penal, que pune quem “infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.
Por julgar que estados e municípios não teriam o poder legal de instituir o toque de recolher, o governo federal acionou o Supremo Tribunal Federal para contestar essa medida restritiva adotada pelos governos do Distrito Federal, da Bahia e do Rio Grande do Sul. Por mais que alguém julgue ser esta ação apenas mais um episódio da disputa entre o presidente Jair Bolsonaro e governos estaduais e municipais, esta é uma controvérsia muito importante e que necessita de resolução, pois estão em jogo alguns direitos fundamentais do cidadão e não há como deixar esse tema em uma zona nebulosa; é preciso que se defina muito claramente o que pode ou não pode ser feito por prefeitos e governadores.
- Os bloqueios contra o coronavírus e o direito de ir e vir (editorial de 29 de março de 2020)
- Não se vence a pandemia no improviso (editorial de 6 de março de 2021)
- Sobre direitos e tiranos (artigo de Rafael Pereira de Menezes, publicado em 8 de dezembro de 2020)
- Vida anormal (artigo de Carlos Luiz Strapazzon, publicado em 8 de dezembro de 2020)
Dois incisos do artigo 5.º, o que trata dos direitos e garantias do cidadão, foram usados na argumentação do governo federal: o II, pelo qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e o XV, segundo o qual “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. E, como vimos, a Lei 13.979 não inclui a possibilidade de decretos estaduais ou municipais instituindo o toque de recolher. Além disso, a própria Constituição define a única circunstância em que esse tipo de restrição extrema pode ser adotado: o estado de sítio, descrito nos artigos 137 a 139 e cuja decretação depende do presidente da República, com aprovação do Congresso Nacional. Durante sua vigência, é válida a “obrigação de permanência em localidade determinada” – e, mesmo assim, o conceito de “localidade determinada” não foi definido com precisão, havendo juristas que recusam a ideia da obrigação de permanecer em um determinado imóvel.
Não deixa de ser um tanto surpreendente que só agora o tema seja analisado pelo Supremo de forma mais abrangente, já que toques de recolher vêm sendo adotados, em maior ou menor grau, desde que a primeira onda da pandemia chegou ao Brasil. Já em março de 2020 a prefeitura de Porto Alegre pretendeu restringir a saída de maiores de 60 anos que não estivessem realizando atividades “estritamente necessárias”, como procedimentos médicos e hospitalares, ou compras em mercados e farmácias, prevendo multa e outras penalidades aos desobedientes. Na mesma época, Campo Grande (MS) instituiu toque de recolher generalizado entre as 22 e as 5 horas. Apesar disso, a corte constitucional só se pronunciou em um caso específico, com decisão monocrática do então presidente do STF, Dias Toffoli, suspendendo o toque de recolher no município paranaense de Umuarama, ainda em abril de 2020.
No entanto, por mais que os toques de recolher pareçam mesmo ser inconstitucionais por não haver previsão na Carta Magna para esse tipo de limitação do direito de ir e vir nas circunstâncias atuais, em que não há estado de sítio em vigor, esta não é uma conclusão automática. A Constituição, em seu artigo 196, também garante o direito dos brasileiros à saúde, com o correspondente dever do Estado em assegurá-la “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Estaria, então, o toque de recolher incluído entre essas “políticas sociais e econômicas” de que o Estado pode se valer, diante do agravamento da pandemia de Covid-19?
As liberdades básicas são direitos naturais, não benesses que provêm do poder público e que podem ser removidas por ele a qualquer momento. A supressão desses direitos tem de ser algo muito bem ponderado e justificado
Responder a esta pergunta, que coloca em polos opostos dois direitos básicos do cidadão, exigirá que os ministros do Supremo se debrucem, mais uma vez, sobre a Lei 13.979, levando em conta, ainda, a gradação que existe nas restrições aos direitos individuais, especialmente as liberdades básicas, como o direito de ir e vir. O balanceamento feito pela lei seria taxativo, ou seja, ela contemplaria todas as medidas que podem ser tomadas pelos gestores no combate à pandemia, com quaisquer outras providências já tendo sido consideradas excessivas ou desproporcionais pelo legislador? Ou, diante da necessidade de garantir o direito constitucional à saúde e da situação extraordinária que o país está vivendo, com a Covid-19 fora de controle e as estruturas hospitalares em colapso, ainda haveria margem para ações que não estejam explicitamente contempladas na lei, mas que sejam consideradas adequadas? É isso que o Supremo será chamado a decidir.
As liberdades básicas – ir e vir, empreender, cultuar, desenvolver-se intelectualmente – são direitos naturais, não benesses que provêm do poder público e que podem ser removidas por ele a qualquer momento. A supressão desses direitos não pode resultar de um mero impulso, não importa quão graves as circunstâncias que a motivem, mas tem de ser algo muito bem ponderado e justificado, com amparo legal. O combate à pandemia do coronavírus é indispensável e precisa ser conduzido sem trégua, mas é preciso que as autoridades estejam atentas para que tal combate não acabe dando margem para o arbítrio, ainda que revestido de boas intenções.
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