Um fato histórico ocorrido na sexta-feira, 27 de abril, está prendendo a atenção da comunidade internacional. Com razão: pela primeira vez desde a sangrenta Guerra da Coreia (1950-1953), um ditador comunista da Coreia do Norte ultrapassou o paralelo 38, que divide a península coreana, e pisou em terras do Sul. As imagens do clima amistoso entre Kim Jong-un, o terceiro da linha dinástica de ditadores do Norte, e o presidente sul-coreano Moon Jae-in, eleito em 2017, correram o mundo e acenderam a esperança de que um acordo de paz finalmente encerre a guerra e abra uma perspectiva, senão de reunificação, pelo menos de desnuclearização do regime comunista. Correu pelo mundo também a ideia precipitada de conceder ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, o prêmio Nobel da Paz.
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Por que se poderia pensar que o crédito pelo encontro entre os mandatários coreanos e pela retomada das conversas foi de Trump? Muito se tem dito sobre a postura firme do presidente americano, que ameaçou despejar “fogo e fúria” sobre o regime de Pyongyang, em agosto de 2017, e flertou com a “destruição total” do país um mês depois, em discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Ocorre que a ambas as declarações se seguiram testes balísticos do regime norte-coreano, dois entre mais de uma dezena que o regime fez durante o primeiro ano da presidência Trump, em meio às trocas de insultos entre o presidente dos Estados Unidos e Kim Jong-un. Ademais, tudo leva a crer que a opção militar nunca esteve de fato sobre a mesa. Uma guerra contra a Coreia do Norte, hoje, traria graves efeitos colaterais inevitáveis à Coreia do Sul e ao Japão e não interessa a ninguém
Os fatos que se conhecem até agora não permitem uma conclusão decisiva. A Coreia do Norte já fez tratativas no passado, as quais acabou abandonando. O gesto de Kim Jong-un pode ser mais um episódio do comportamento errático de um regime enlouquecido – e nesse caso seria ainda mais difícil ver mérito na retórica belicista de Trump. No entanto, parece mais razoável que, na escalada a que o mundo assistiu, Pyongyang tenha saído fortalecida do ponto de vista estratégico, em uma ação calculada pelo regime. Afinal, desde que a Coreia do Norte denunciou o Tratado de Não Proliferação Nuclear, em 2003, o que se vê é um país que afrontou perigosamente a a comunidade internacional, aumentou sua capacidade militar e, agora, pode sentar à mesa e negociar com uma força que não tinha. Embora isso certamente não seja culpa de Trump, em nada o clima tenso do ano passado entre o presidente americano e o ditador foi capaz de alterar esse conjunto de fatores.
A comunidade internacional deverá rever estratégias e redobrar esforços para evitar que outros ditadores repitam a estratégia
Quais outros elementos compõem esse conjunto? Em primeiro lugar, a China. O primeiro teste nuclear da Coreia do Norte, ocorrido em outubro de 2006, foi determinante para a mudança de postura da China em relação ao regime. Desde o armistício de 1953, a Coreia do Norte tornou-se praticamente um estado satélite da China, que é seu esteio militar e hoje seu maior parceiro comercial, de que depende até para alimentar sua população e gerar energia. A estabilidade da península coreana foi sempre um dos objetivos estratégicos da política externa chinesa, mas a postura agressiva de Pyongyang acabou militarizando ainda mais o “quintal chinês” – basta lembrar a s tensões quando da instalação do escudo de mísseis americano em território sul-coreano – e a perspectiva de um colapso do regime de Kim Jong-un tem gerado o receio de uma onda de refugiados em território chinês. Soma-se a isso o fato de as disputas acerca do Mar do Sul da China e de Taiwan terem assumido a dianteira nas preocupações de Pequim.
A mudança de postura chinesa, aliás, permitiu que a Organização das Nações Unidas (ONU) passasse nove rodadas de sanções, por unanimidade, contra a Coreia do Norte desde 2006. Nessa seara, o papel dos Estados Unidos – além do apoio militar aos aliados tradicionais no leste asiático – tem sido crucial, quer pelo apoio aos esforços multilaterais, quer pela imposição de sanções unilaterais ainda mais duras. Não haverá solução para um impasse tão renhido como o coreano que não passe pela concertação e pelo multilateralismo e deve-se reconhecer que esse esforço tem sido apoiado pelo atual governo americano.
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Não se pode deixar de lembrar do protagonismo da sociedade sul-coreana, que vem dando mostras de estar disposta a cooperar nos esforços de aproximação desde a década de 1980 e, recentemente, elegeu um parlamento e um governo inclinados a adotar uma posição mais flexível nas negociações com a ditadura vizinha. Essa é a primeira disposição mais resoluta dos sul-coreanos, que afinal são os mais interessados nos resultados, desde o abandono da “Política do Sol”, em 2008, dois anos depois de a Coreia do Norte fazer seu primeiro teste nuclear. A aproximação entre Seul e Pyongyang para a formação de uma delegação conjunta para as Olimpíadas de Inverno foi determinante para abrir o canal de diálogo que hoje frutifica.
De todo modo, ainda é cedo para sedimentar certezas. Apesar de os sinais serem alvissareiros, já houve conversas entre Coreia do Norte e do Sul, cúpulas nos anos 2000 e 2007 e boas intenções, sempre traídas pelos tiranetes comunistas. Antes de tudo, parece ter vencido o realismo de Pyongyang, que desrespeitou o regime de não proliferação nuclear, desenvolveu armas nucleares e agora negocia a partir de uma posição bem mais confortável. A comunidade internacional deverá rever estratégias e redobrar esforços para evitar que outros ditadores repitam a estratégia. Tampouco se pense que a questão coreana estará resolvida em pouco tempo ou fora do multilateralismo. O encontro entre Trump e Kim Jong-un, que deve ocorrer nas próximas semanas na Zona Desmilitarizada entre as Coreias, seria uma ótima oportunidade para anunciar a retomada das conversações hexapartites.
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