A lei, no Brasil, foi abolida e substituída por uma bola de cristal. É a única forma de explicar satisfatoriamente como o Tribunal Superior Eleitoral foi capaz de, por unanimidade, cassar o registro de candidatura de Deltan Dallagnol (Podemos-PR) nesta terça-feira. A decisão, ainda passível de recurso, reverteu decisão anterior do Tribunal Regional Eleitoral paranaense e contrariou a Procuradoria-Geral Eleitoral, que era oposta à impugnação da candidatura. O ex-procurador do Ministério Público Federal, que ganhou fama nacional ao coordenar a força-tarefa da Operação Lava Jato no MPF, foi eleito deputado federal em outubro de 2022 com quase 345 mil votos – a segunda maior votação para o cargo na história do Paraná.
A ação movida pela Federação Brasil da Esperança, que inclui o PT (quem mais?), alegava que Dallagnol estaria inelegível por ter pedido exoneração do MPF enquanto respondia a processo administrativo disciplinar (PAD) e por ter sido condenado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) no caso das diárias pagas a membros da força-tarefa. De fato, a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) inseriu no inciso I do artigo 1.º da Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar 64/90) as alíneas “g”, que torna inelegíveis para qualquer cargo “os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário”; e “q”, referente aos “magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”.
O relator do processo no TSE, Benedito Gonçalves, afastou a inelegibilidade relativa à condenação no TCU, já que esta decisão, em que a corte de contas ignorou uma série de princípios jurídicos e garantias do réu, foi suspensa pela primeira instância da Justiça Federal em setembro de 2022, ou seja, ainda antes da eleição. Restava, no entanto, a inelegibilidade ligada aos processos disciplinares. Quanto a isso, a Lei da Ficha Limpa é inequívoca: se houvesse PAD em curso contra Dallagnol no momento de sua exoneração, em novembro de 2021, o ex-procurador não poderia ter se candidatado.
Apoiando-se em termos no condicional e exercícios de pura adivinhação, o relator Benedito Gonçalves atropelou a lógica e a verdade dos fatos para cassar Dallagnol, já que o ex-procurador não se encaixava nos critérios de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa
Mas havia tais processos em andamento? A resposta é um cristalino, um rotundo “não”. Os PADs que Dallagnol chegou a enfrentar enquanto ainda estava no MPF já haviam sido concluídos – com penas de advertência, em novembro de 2019, e de censura, em setembro de 2020, dois absurdos que comentamos exaustivamente neste espaço. O próprio Conselho Nacional do Ministério Público, responsável pelas duas condenações de Dallagnol, atestara em certidão a ausência de novos processos disciplinares em curso. O Tribunal Regional Eleitoral paranaense reconheceu este fato e deferiu a candidatura de Dallagnol por unanimidade, poucos dias depois do pleito. Os petistas e seus aliados, então, foram ao TSE, e a Procuradoria-Geral Eleitoral repetiu o óbvio: não havendo PADs pendentes, não há inelegibilidade, já que Dallagnol não se encaixaria na descrição da Lei da Ficha Limpa.
Para contornar a verdade inescapável, Gonçalves – aquele dos tapinhas de Lula e do “missão dada, missão cumprida” na diplomação do petista –, precisou recorrer a um festival de ilações. A Federação Brasil da Esperança alegara que, quando pediu exoneração, Dallagnol tinha contra si uma série de outras contestações no CNMP, como reclamações disciplinares e pedidos de providências. Gonçalves se agarrou a esse fato e se lançou em um exercício de adivinhação após adivinhação. “Todos esses procedimentos, como consequência do pedido de exoneração, foram arquivados, extintos ou mesmo paralisados, e a legislação e os fatos apurados poderiam perfeitamente levá-lo à inelegibilidade. Sem nenhuma margem de dúvida, constata-se a gravidade dos fatos imputados ao ora recorrido nesses procedimentos. Não se cuida, aqui, de invadir a competência de outros órgãos e firmar a materialidade e a ilicitude das condutas, mas de reforçar que o pedido de exoneração teve propósito claro e específico de burlar a incidência da inelegibilidade”.
Poderiam – eis o alicerce completamente frágil da argumentação de Gonçalves. É verdade que a exoneração extingue todos os procedimentos, e também é verdade que, caso Dallagnol tivesse permanecido no MPF, ao menos alguns desses procedimentos poderiam ter sido transformados em PADs. Mas, para efeitos da Lei da Ficha Limpa, isso é irrelevante: interessa apenas se há processos efetivamente em aberto, o que não havia. E, do ponto de vista lógico, a argumentação de Gonçalves é falaciosa: dá como certa uma possibilidade sem nem mesmo considerar a hipótese contrária, a de que os procedimentos não resultassem em PADs, algo que ocorreu ao menos uma vez no caso de Dallagnol, quando, em agosto de 2020, o CNMP arquivou uma queixa referente aos slides de Power Point expostos durante a apresentação de denúncia criminal contra Lula, em 2017.
Em resumo, o argumento dos petistas, acolhido por Gonçalves, é o de que os procedimentos não só poderiam, mas certamente iriam se transformar em PADs; se isso ocorresse, Dallagnol estaria inelegível; só não se transformaram porque Dallagnol pediu exoneração antes. Foi assim, apoiando-se em termos no condicional e exercícios de pura adivinhação, que o relator atropelou a lógica e a verdade dos fatos. Já seria suficientemente vergonhoso se ele ficasse sozinho, sendo derrotado pelo restante do plenário; mas os demais ministros (Alexandre de Moraes, presidente da corte, além de Cármen Lúcia, Carlos Horbach, Nunes Marques, Raul Araújo e Sérgio Banhos) não quiseram deixar seu colega isolado no vexame e conseguiram escrever uma das páginas mais absurdas da história da corte eleitoral – o que não deixa de ser uma façanha, tantas as estripulias jurídicas cometidas pelo TSE no período eleitoral de 2022.
Ao menos em sua instância maior, a Justiça Eleitoral mostrou nesta terça-feira que de justa não tem nada. Tornou-se órgão de perseguição política, disposto a inviabilizar a vida pública de qualquer um que tenha se colocado no caminho de Lula em algum momento ou que tenha feito críticas à forma como o Supremo Tribunal Federal desmontou o combate à corrupção no Brasil – é sintomático que o caso de Dallagnol tenha ido para a pauta do TSE depois que o deputado rebateu falas de Gilmar Mendes sobre o “germe do fascismo”, em ataque à Lava Jato. Se os fatos e a lei isentam Dallagnol de culpa, então, que sejam ignorados e substituídos pelo triunfo das vontades superiores – eis como funciona o Brasil de 2023.
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