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Editorial

O TSE atrapalha o debate sobre o apoio de Lula ao aborto

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A ministra Cármen Lúcia, do STF e do TSE, proibiu peça de propaganda de Jair Bolsonaro sobre o apoio de Lula à legalização do aborto. (Foto: STF)

Meros sete anos separam a Cármen Lúcia do “cala a boca já morreu”, dito quando ela foi relatora da ação no Supremo Tribunal Federal a respeito da publicação de biografias não autorizadas, da Cármen Lúcia que acrescenta mais um item à lista de assuntos que não podem ser mencionados na atual campanha eleitoral para a Presidência da República. Na sexta-feira, dia 14, na qualidade de ministra do Tribunal Superior Eleitoral, ela proibiu a veiculação de uma peça de propaganda de Jair Bolsonaro (PL) contendo falas do ex-presidente, ex-presidiário e ex-condenado Lula (PT) defendendo a legalização do aborto.

“A afirmação [relativa ao aborto] não corresponde dados verídicos nem comprovados, não havendo comprovação de que o candidato tenha declarado, prometido ou apresentado projeto de governo no sentido de promover a alteração da lei que cuida do tema do aborto”, diz Cármen Lúcia, introduzindo uma nova espécie de vedação ao debate eleitoral: só poderá ser alvo de crítica aquilo que tiver sido devidamente “declarado, prometido ou apresentado”. Trata-se de uma pretensão absurda, pois implica o conhecimento perfeito daquilo que vai na mente de cada candidato, que pode muito bem ter certos planos e não os tornar públicos; ignora que é possível traçar prognósticos futuros com base no passado; e inviabiliza boa parte de críticas que são legítimas no debate político. Levando essa determinação às últimas consequências, não seria possível nem mesmo dizer que Lula ou Bolsonaro farão um mau governo caso sejam eleitos, ou que agirão de forma fiscalmente irresponsável, ou que tomarão esta ou aquela medida considerada prejudicial ao país. Afinal, todas essas são afirmações negativas em relação ao candidato alvo da crítica, mas nenhuma delas teria lastro em algo “declarado, prometido ou apresentado”.

Como é impossível negar a existência da fala de Lula em defesa da legalização do aborto, para impedir que ela volte ao debate público é preciso tentar enquadrar sua divulgação em algum dos novos termos da novilíngua eleitoral usada para justificar a atual enxurrada de proibições

À parte o ridículo da restrição imposta por Cármen Lúcia, ela nem mesmo se aplicaria ao caso de Lula. Afinal, a peça agora censurada usa uma fala do petista durante debate realizado em abril, promovido pela Fundação Perseu Abramo, vinculada ao PT, e pela fundação alemã Friedrich Ebert. Na ocasião, Lula afirmou que “aqui no Brasil não faz [aborto] porque é proibido, quando na verdade deveria ser transformado numa questão de saúde pública, e todo mundo ter direito e não ter vergonha. Eu não quero ter um filho, eu vou cuidar de não ter meu filho, vou discutir com meu parceiro. O que não dá é a lei exigir que ela precisa cuidar”. A frase está documentada em vídeo e foi reproduzida por inúmeros veículos de imprensa Brasil afora. Como é impossível pretender que “todo mundo tenha direito” a algo que hoje é ilegal sem que haja uma modificação normativa, legal ou judicial que legalize tal prática, podemos muito bem considerar que o apoio de Lula à legalização está devidamente “declarado”.

Além disso, se há algo no qual o PT coloca seu empenho, esse algo é a legalização do aborto, que faz parte oficialmente das plataformas do partido desde 2007. Lula e o PT tentaram, sem sucesso, a via legislativa para esse objetivo: em 2005, uma Comissão Tripartite da Secretaria Especial de Política para as Mulheres, criada “para discutir, elaborar e encaminhar proposta de revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez”, apresentou um anteprojeto de lei que previa a “realização legal do aborto, por decisão das mulheres, em gestações de até 12 semanas, e com até 20 semanas se a gravidez fosse resultante de violência sexual”. O governo Lula também usou outros meios para atacar a vida por nascer. Naquele mesmo 2005, o Ministério da Saúde atualizou suas normas técnicas para o atendimento, no SUS, de abortos em caso de gravidez resultante de estupro; a modificação mais importante foi a dispensa da apresentação de boletim de ocorrência, o que na prática abriria brechas para o aborto sob demanda na rede pública, ocultado sobre uma falsa alegação de violação sexual. Durante quase todo o segundo mandato de Lula a pasta da Saúde esteve sob o comando de um declarado abortista, José Gomes Temporão. E, em 2009, a terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) continha a defesa explícita da legalização do aborto, depois removida devido à repercussão negativa.

O “poste” de Lula, Dilma Rousseff, não agiu de forma diferente. Ela, que anos antes de se candidatar à Presidência havia defendido veementemente a legalização em entrevistas, chegou a divulgar uma carta aos eleitores cristãos durante a campanha de 2010 prometendo “defender a manutenção da legislação atual sobre o assunto” e “não tomar a iniciativa de propor alterações” na legislação relativa ao aborto (mas sem dizer se vetaria uma legalização caso o Congresso a aprovasse). No entanto, também ela nomeou abortistas para seu ministério, caso de Eleonora Menicucci na Secretaria de Políticas para as Mulheres; e, o mais importante, indicou para o STF aquele que é hoje o mais radical dos defensores do aborto na corte, o ministro Luís Roberto Barroso. Se o passado diz alguma coisa sobre o futuro, o fato de Lula não ter “declarado, prometido ou apresentado projeto de governo no sentido de promover a alteração da lei que cuida do tema do aborto” não significa absolutamente nada.

Como, portanto, é absolutamente impossível negar a existência da fala de Lula usada na propaganda de Bolsonaro, nem todo o histórico petista de abortismo, para impedir que tudo isso volte ao debate público é preciso tentar enquadrar sua divulgação em algum dos novos termos da novilíngua eleitoral que vem sendo usada para justificar a atual enxurrada de proibições. “Descontextualização”, “adulteração grosseira”, “desinformação” e “mensagem distorcida” foram algumas das expressões usadas pela ministra, agarrando-se especialmente a um verbo específico dito por uma apoiadora de Bolsonaro na peça censurada: “Lula quer mudar a lei e incentivar a mãe a matar o próprio filho no seu próprio ventre”, diz-se a certa altura. Descarte-se desde já a alegação da campanha petista de que isso seria falsa atribuição a Lula dos crimes de apologia e incitação ao crime, pois tal “incentivo” viria apenas após a eventual modificação da lei; fato é que “incentivar” não necessariamente pode ser entendido como um estímulo direto para que alguém faça algo, mas também como uma facilitação, a ação de criar as condições para que este algo ocorra. Pode-se até mesmo alegar que a escolha do verbo por parte da campanha de Bolsonaro foi infeliz, mas não que justifique censura.

Ao impedir a veiculação de uma peça que mostra Lula dizendo, com suas próprias palavras, o que pensa sobre o aborto, Cármen Lúcia – que, aliás, no início deste ano assinou uma carta que usa linguagem cifrada em defesa da legalização – prejudica o debate público sobre um tema importante para muitos eleitores. Além disso, mantém a escrita de uma Justiça Eleitoral que há muito tempo perdeu a mão na condução deste processo eleitoral. A “interferência mínima” prometida por Alexandre de Moraes ao tomar posse na presidência do órgão deu lugar a um esforço censurador sem nenhum lastro legal, que recorre a conceitos vagos como “desordem informacional” para bloquear críticas legítimas. E só não chamamos este esforço censurador de “amplo, geral e irrestrito” porque ele normalmente está direcionado a apenas um lado deste embate, desequilibrando a balança e fazendo do TSE um ator político, em vez de organizador imparcial do pleito.

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