O ano que acaba de terminar talvez tenha sido o mais duro desde o início do século XXI. O enfrentamento de uma doença mundial completamente nova e inesperada desestabilizou as certezas que tínhamos sobre a sociedade, a economia ou mesmo a forma de conduzir nossas relações pessoais.
Foram mais de 190 mil brasileiros que tiveram suas vidas abreviadas pela pandemia – no mundo, a soma passa de 1,8 milhão –, sem contar as inúmeras perdas econômicas geradas pelas medidas adotadas para evitar o contágio. Perdas que se traduzem em empregos, negócios e, porque não, sonhos.
Não é exagero nenhum afirmar que o ano de 2020 foi um ano de crise – palavra que em seu sentido original grego é a ação de separar, de escolher. Em outras palavras, há uma divisão e uma necessidade de decidir; por isso, um momento difícil também é chamado de "crítico".
E momentos críticos foram uma constante durante o ano. Talvez os mais claros e presentes na memória de todos tenham sido os que colocaram as autoridades e nós mesmos diante da dicotomia entre saúde versus economia. Muitos reputaram-na falsa, mas durante o ano, toda pessoa em posição de poder teve de lidar com essa escolha. Sem entrar no mérito de que medidas são mais apropriadas para evitar o contágio da covid-19, a tentativa de reduzir o contato social esbarrava sempre em setores da economia que, por sua vez, também manifestavam a necessidade de continuar suas atividades, muitas vezes por uma pressão legítima da própria sociedade. Esse é um mero exemplo de como a divisão existiu de fato.
A pandemia também acentuou uma polarização que já vinha crescendo antes. No início de 2019, uma pesquisa do Instituto Ipsos já apontava que quase um terço dos brasileiros (32%) afirmava que não valeria a pena tentar conversar com pessoas que possuem visões políticas diferentes das suas. Isso demonstra que para parcela expressiva da sociedade o esforço de persuadir, de convencer o outro a aceitar uma ideia (mais próxima da verdade, talvez) é algo que nem vale a pena tentar.
Num cenário como esse não é de admirar que o debate racional, mais ou menos vibrante, mas sempre tolerante, seja muitas vezes suplantado pela propaganda, pelo slogan. Decorre daí esse acentuamento de tensões que acompanhamos durante o ano em questões políticas, econômicas, comportamentais, e, ainda, para alguns exemplos bem ao alcance da mão, acerca precisamente do próprio tratamento para a covid ou a utilização de vacinas.
O filósofo francês Louis Lavelle, em seu livro La parole et l'écriture [A fala e a escrita], lançado em meio a Segunda Guerra Mundial, anunciava os riscos que uma sociedade corre ao abusar da palavra, sobretudo em momentos tumultuosos, já que a fala e a escrita são os principais instrumentos que os homens possuem para agir uns sobre os outros. O que se dirá então de uma sociedade que sequer acha que vale a pena fazer uso da palavra? Ou que a substitui pelo mero jogo de imagens contidas num “meme”?
Felizmente há um caminho alternativo. A complexidade das diversas situações sociais deve, pelo contrário, incentivar-nos ao diálogo. Como já expusemos várias vezes, acreditamos que se tivermos uma honesta disposição ao debate e a respeitar a inteligência do outro estaremos em melhores condições de uma possível, embora sempre problemática, aproximação da verdade. Isso é extremamente relevante porque, a partir de um núcleo comum, soluções podem ser encontradas e aceitas com muito mais facilidade. O respeito ao outro fortalece e enriquece a vida em comum, ao mesmo tempo em que sai fortalecido e enriquecido no momento mesmo em que é exercido. Numa democracia representativa, em que o funcionamento mais perfeito da sociedade depende da persuasão, a crença na discussão racional é fundamental. Caso contrário, arriscamos aceitar que a mera vontade é soberana e que vale a lei do mais forte, pavimentando assim um atalho para a tirania.
O ano de 2021 chega repleto de desafios. Há uma pandemia a ser vencida e uma economia a se reerguer -- que necessitará da aprovação das reformas estruturantes que ficaram engavetadas em 2020. Só teremos êxito nisso se pudermos contar com a colaboração uns dos outros, se restabelecermos a confiança na busca do bem comum. Para isso, é preciso contar especialmente com o poder da razão e do diálogo. Que essa seja a tônica do ano que se inicia.
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