Nesta terça-feira (7), o presidente Jair Bolsonaro assinou mais um decreto que flexibiliza ainda mais as regras para registro, posse, porte e comercialização de armas e munições. O decreto anterior (assinado em 15 de janeiro deste ano) restringia-se principalmente às regras sobre a posse de armas e estabelecia casos concretos do que seria a “efetiva necessidade” para a posse, presente no artigo 4.º da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, também conhecida como Estatuto do Desarmamento.
(A Gazeta do Povo já se manifestou na ocasião com o entendimento – mesmo tendo em conta que esta não é a posição de muitos de nossos leitores, que compartilham muitas de nossas convicções – que o melhor caminho para resolver o problema da insegurança no Brasil é uma sociedade desarmada com um poder público eficiente no combate ao crime, porém considerando a necessidade do acesso a armas para autodefesa em alguns casos. Para não ser repetitivo, convidamos o leitor a ler nosso argumento aqui.)
O decreto anterior desagradou à boa parte do eleitorado de Bolsonaro – principalmente a que votara nele justamente por conta de suas posições armamentistas –, por ter sido restrito demais.
As consequências de ampliar o acesso às armas de fogo para tantas categorias vão muito além de uma mera questão legal
Tudo mudou com o decreto desta terça-feira. O presidente facilitou o porte de armas (isso mesmo, o porte, e não meramente a posse) para 19 categorias: instrutor de tiro ou armeiro credenciado pela Polícia Federal; colecionador ou caçador com certificado expedido pelo Exército; agente público (inclusive inativo) da área da segurança pública; da Agência Brasileira de Inteligência; da administração penitenciária; do sistema socioeducativo, desde que lotado em unidade de internação; que exerça atividade com poder de polícia administrativa ou de correição em caráter permanente; dos órgãos policiais das assembleias legislativas dos estados e da Câmara Legislativa do Distrito Federal; detentor de mandato eletivo no Executivo ou Legislativo da União, estados, Distrito Federal e municípios; advogado; oficial de Justiça; dono de estabelecimento que comercialize armas de fogo; dirigente de clube de tiro; residente em área rural; profissional de imprensa que atue em coberturas policiais; conselheiro tutelar; agente de trânsito; motoristas de empresas e transportadores autônomos de cargas; e funcionário de empresas de segurança privada e de transporte de valores. Como é possível perceber, o decreto amplia o número de categorias que podem portar armas de uma maneira bastante extensa.
A Lei 10.826 em seu art. 6.º, que trata do porte de armas, tem, ao contrário, uma redação bastante restritiva: “É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para...” e segue com a enumeração das exceções, ou seja, com a lista estrita de quem pode andar com uma arma durante o exercício de suas atividades (em geral, pessoas e agentes do Estado que lidam diretamente com a segurança pública). Em nenhum momento a lei preconiza que “advogados” ou “profissionais de imprensa que atuem em coberturas policiais” podem portar armas, apenas para citar os exemplos que chamam mais a atenção.
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Bolsonaro afirmou na coletiva de imprensa que o decreto fora concebido no “limite da lei”, mas o que aconteceu de fato foi algo mais grave, foi uma interpretação demasiado extensiva da possibilidade de autorização por meio de atos regulamentares, prevista no §1.º do artigo 10 do “Estatuto do desarmamento”. E muito provavelmente o decreto sofrerá, com razão, alguma restrição pelo Poder Judiciário, por ultrapassar os limites do Poder Executivo de regulamentar.
Mas as consequências de ampliar o acesso às armas de fogo para tantas categorias vão muito além de uma mera questão legal. Mesmo que os testes psicológicos e de aptidão ainda sejam necessários para aquisição de uma arma, não há garantias de que o Brasil seja mais seguro com mais pessoas circulando pelas ruas com pistolas e revólveres (mesmo que seja durante atividades profissionais). Esse é um debate mais amplo e que pode envolver vidas humanas, e deve, portanto, ser levado ao Legislativo – lugar próprio para a definição de leis dessa natureza e que conta com a representação da grande maioria de visões da sociedade brasileira, na figura dos deputados e senadores.
O Executivo através de um decreto, sem a intermediação dos outros poderes, ultrapassou seus limites, e, na prática, contornou a lei. Apesar das boas intenções, questões dessa magnitude devem percorrer outro caminho institucional.