A violência física e a depredação felizmente não foram a tônica das manifestações públicas deste domingo, ao contrário do que ocorreu no fim de semana anterior e na segunda-feira seguinte. Diante de um risco anunciado de enfrentamento entre “torcidas” políticas rivais, os inúmeros grupos país afora de apoio ao governo optaram por não sair, deixando o dia, por assim dizer, para os grupos críticos ao presidente. No atual caldeirão fervente político que toma conta do Brasil, é alvissareiro assistir ao protagonismo de homens e mulheres comuns conduzido de maneira civilizada, de lado a lado, sem agressões verbais mútuas e sem a intervenção calhorda de anarquistas violentos e irresponsáveis. A atuação atenta das forças de segurança tem sua parte nisso, mas não é demais ressaltar o mérito dos próprios cidadãos. De qualquer forma, o clima entre os poderes continua acre, desgastado, com algumas autoridades públicas em pé de guerra.
Manifestações ditas em defesa da democracia têm se repetido, congregando posicionamentos que vão da esquerda, passando pelo centro até a direita e a centro-direita, se é que essas distinções sejam realmente possíveis. Muitas delas são obra de verdadeiros democratas, autenticamente preocupados com os rumos da nação. Muitos dos abaixo-assinados que viram à luz do dia nas últimas semanas, por exemplo, se encontram subscritas por importantes atores da sociedade civil. Outras não passam de oportunismo de quem depredou essa mesma democracia quando esteve no poder (e lamentou não tê-la depredado ainda mais). E, como vimos semanas atrás, há também quem se esconda sob o slogan da “democracia” para agredir e destruir. A questão é: há algum risco efetivo para a democracia brasileira? A pergunta, que já vinha sendo feita antes do último fim de semana, ganha ainda mais relevância quando se acrescenta este novo ingrediente de manifestações públicas frequentes que toma as ruas de cidades importantes do país.
Vive-se hoje, considerando-se os últimos três meses, uma tensão sem dúvida única desde a promulgação da Carta de 1988. Houve, é evidente, nesses anos sob a vigência da atual Constituição, inúmeros atentados à democracia, dos quais o mensalão e o petrolão são os paradigmas mais evidentes, pontas de um iceberg cuja parte submersa era todo um projeto de tomada subreptícia de poder. Mas mesmo ali ninguém acenou com o rompimento imediato da ordem democrática institucional e as estrepolias do partido no poder puderam ser contidas precisamente através dos instrumentos democráticos, entre os quais o voto e uma firme atuação das instituições públicas e da imprensa. A situação atual tem, portanto, uma gravidade peculiar. E a admissão da existência dessa crise vem de todos os lados, tanto dos que se opõem a Bolsonaro quanto dos próprios apoiadores do presidente – a diferença é que cada lado enxerga a origem das ameaças de forma diferente.
Para os aliados de Bolsonaro, a democracia é agredida quando inúmeros outros atores se esforçam ao máximo para “não deixá-lo trabalhar”, violentando assim o desejo de 58 milhões de brasileiros que depositaram nele a esperança de um país melhor. No Supremo, o ativismo judicial manifestado em decisões monocráticas ou colegiadas estaria extrapolando os limites constitucionais; no Congresso, a falta de espírito público dos parlamentares e a “velha política”, que não foi possível extinguir mesmo com a grande renovação legislativa nas eleições de 2018, chantagearia o presidente, impedindo-o de concretizar sua pauta; por fim, a imprensa estaria agindo mais como uma força de oposição que como cumpridora de seu papel de retratar honestamente o governo e seus esforços para cumprir suas promessas de campanha e honrar o voto dos brasileiros.
Defender a democracia, segundo essa linha de reflexão, é opor-se de maneira firme ao que é entendido como um esforço coletivo para negar voz às dezenas de milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro. A agressividade do discurso do presidente, por exemplo, não caracterizaria nada mais que um estilo, uma demonstração de patriotismo e uma reação necessária diante de tantas agressões vindas de todos os lados. E são muitos os que defendem que mesmo uma ação mais extrema também seria compatível com a Constituição Federal. Não falamos aqui do número não desprezível de defensores de um regime de força, independentemente da Constituição, nas hostes bolsonaristas, mas daqueles que julgam haver uma previsão constitucional, no artigo 142 da Carta Magna, para que as Forças Armadas interviessem em caso de tensão insuperável, agindo como um poder moderador para repor a ordem democrática. É com base nesta interpretação que muitos não veem incompatibilidade entre a defesa de uma intervenção militar e o respeito à Constituição – e, consequentemente, à democracia.
Do lado dos que criticam o presidente, inclusive alguns antigos aliados, vigora a percepção de que são Bolsonaro, seus filhos e aliados os que tensionam os fios que definem os limites da democracia. Muitos admitem que, sim, também há erros e excessos nos demais poderes, mas todos consideram que o verdadeiro elemento desestabilizador está no Planalto, quando passa dos limites nas críticas que faz aos outros poderes; quando cria aparentes impasses na discussão dos rumos do país com o Legislativo; quando, simbolicamente, comparece a manifestações que ostentam faixas de hostilização à democracia; quando tira importância aos arroubos autocráticos de seus filhos nas redes sociais; quando acena, em um ou outro discurso, de forma pouco clara a alguma solução de força inexistente no quadro institucional brasileiro; quando, enfim talvez, segundo esse olhar, pareça tentar reunir forças para um autogolpe e apostar na instabilidade como forma de justificar um futuro recurso ao uso da força.
A tensão, portanto, é real. Admitem-na não só os analistas, mas os principais agentes políticos de todas as tendências. Isso não quer dizer que se esteja na iminência de uma ruptura, mas sim que algum risco existe, mesmo que pequeno, e só isso já é inadmissível. O recurso à violência e à depredação dos “antifas” e torcidas de futebol é o ingrediente mais recente desse caldo político, com potencial, ainda distante felizmente, de ser o catalisador de uma solução não republicana. Algo há de ser feito antes que alguém resolva pagar para ver e parta para o tudo ou nada.
Não é possível, no entanto, encontrar o caminho da pacificação sem o reconhecimento da natureza real do problema. Se nos contentarmos com o abafamento das tensões, mantendo um clima de “guerra fria” entre poderes, bastarão algumas concessões para acalmar ânimos – uma decisão do Supremo, uma votação no Congresso, uma ação presidencial, reuniões, tudo pode ser lido como uma mão estendida para evitar o pior. Mas isso servirá apenas até o próximo episódio fazer reviver a rivalidade latente. Não podemos nos satisfazer com isso; é preciso buscar uma autêntica pacificação, mas ela requer a admissão franca da origem da tensão e uma compreensão do ethos, da atitude que uma cultura democrática requer dos atores políticos para poder perdurar e amadurecer.
A primeira dessas atitudes é a convicção de que defender ideias diferentes das próprias é algo perfeitamente legítimo e não denota necessariamente má-fé da parte da outra pessoa. Por óbvio, não nos referimos aqui a ideias que afrontem diretamente a dignidade do ser humano, como o racismo, mas a uma série de outras questões de ordem ideológica, econômica, social, cultural, religiosa, enfim, a maior parte dos temas que fazem parte do dia a dia dos indivíduos e da discussão política. Isso vale inclusive para aquelas ideias que consideramos mais absurdas, e para isso basta que cada um pense na própria família ou círculo de amigos. A não ser que se viva em uma bolha ideológica totalmente homogênea, todos nós conhecemos e estimamos parentes e amigos que discordam de nós. Se não as consideramos pessoas mal intencionadas, mas apenas pessoas sinceramente enganadas, por que não estender essa boa vontade aos demais? E vamos ainda além: essa divergência não apenas deve ser tolerada, mas vista como desejável e capaz de enriquecer a perspectiva que se tem sobre qualquer problema.
Aqui se faz necessário um lembrete importante: considerar legítimas ideias diferentes não significa adotar a postura relativista que enxerga todos os pontos de vista como igualmente corretos, como se não houvesse realidades objetivas e uma verdade que devemos perseguir. Aliás, é a postura relativista que torna impossível qualquer debate honesto, porque já parte do pressuposto de que não existe lugar nenhum a chegar. Ideias e comportamentos, assim, podem e devem ser criticados, com toda a firmeza que se julgar necessária; mas eles devem ser separados dos indivíduos que os praticam ou defendem. É sempre necessário manter um profundo respeito pelos demais, mesmo que estejam no lado oposto do espectro político; um respeito que se manifesta em civilidade e jamais em agressões verbais que não funcionam como argumento, mas apenas para reduzir a dignidade do outro.
E, quando se enxerga o outro não como inimigo mortal, mas como alguém que goza da mesma dignidade; e quando se enxerga outras ideias como legítimas, ainda que passíveis de crítica, surge a convicção de que a busca de soluções para os problemas comuns passa necessariamente pela negociação, entendida no sentido correto da palavra, como capacidade de compromisso, de ceder e aceitar pontos de vista diferentes dos próprios, num esforço que, como regra geral, gera soluções mais completas do que as inicialmente formuladas (graças justamente à riqueza de pontos de vista trazida pela divergência) e maior satisfação ou conformidade entre todos os envolvidos, ao contrário do que ocorre quando um único ator busca impor sua convicção a todo custo e, ainda que tenha sucesso, termina desagradando a todos os demais neste processo.
Seria útil ainda, para uma melhor compreensão do pano de fundo moral a que a democracia nos convida, incluir a colegialidade ou humildade participativa, a justiça procedimental, a justiça pela comunicação, a solidariedade e muitas outras virtudes, mas quanto se disse é suficiente para um primeiro diagnóstico do quadro atual. Deixe-se apenas consignado que, embora difícil, um sistema democrático é sempre o regime que mais respeita a autonomia e dignidade de cada homem, que leva ao mais pleno florescimento das potencialidades humanas e aponta para um nível de humanidade mais alto e perfeito.
Adquirir, no entanto, esse conjunto de virtudes exige esforço, competência e um certo nível de experiência. E, quando essas atitudes não brilham como deveriam, seja por se carecer de alguma determinada qualidade, seja por falta de uma vivência específica (por exemplo, a de administrar uma equipe ou de habituar-se a dialogar com abertura para tentar persuadir outros de suas idéias...) dificultam muito a leitura da própria realidade. É assim que um homem público e um cidadão, mesmo defendendo posições e princípios valiosos, podem, até mesmo com boa-fé, mostrarem-se frustrados com a prática democrática e incapazes de lidar com ela. Fazem um julgamento inadequado de tudo e de todos, até, pouco a pouco, convencerem-se de que são os únicos portadores da verdade, que é seu dever fazê-la prevalecer custe o que custar e, por fim, não enxergarem outro caminho para isso que não o da força.
Em grande medida, é isso o que está acontecendo no país neste momento. O presidente Bolsonaro parece julgar que a pauta vencedora em 2018 – liberalismo econômico, valores morais e familiares, dureza com o crime, entre outras plataformas –, por ser a melhor para o país (e em muitos temas realmente o é), tem de ser implantada a qualquer custo e, havendo obstáculos, devem ser obrigatoriamente removidos, pela força se necessário, atropelando-se os demais poderes e hostilizando os críticos. Parece julgar também que todos os que divergem dele em algum aspecto, mesmo que substancialmente estejam do mesmo lado, estão de má-fé e estão contra o povo. Demonstra, assim, uma incompreensão a respeito da democracia tão grande ou maior que alguns de seus predecessores que, estando no poder e enfrentando obstáculos semelhantes, resolveram, em vez de bater de frente, “comprá-los” ou aparelhá-los. Nestes, apesar da malícia (infinitamente mais perversa) e hipocrisia, houve pelo menos a compreensão e reconhecimento da força e dinâmica da democracia.
Quanto aos demais poderes, são inegáveis suas mazelas. Que o STF vem tomando para si funções do Legislativo é algo que já vinha ocorrendo muito antes de Bolsonaro chegar ao Planalto, e de fato o ativismo judicial tem extrapolado o campo do comportamento, onde ele se mostra de forma mais evidente, para interferir também em decisões de governo e política econômica – tudo isso sem falar do famigerado inquérito das fake news, um inquérito que nasceu envolto em controvérsia e que parece ferir garantias importantes da Constituição e princípios elementares do processo penal. No Congresso, o Centrão continua criando dificuldades para vender facilidades, e finalmente embarca no trem governista, com tudo o que isso representa. Quanto à imprensa, não são poucos os veículos, é preciso reconhecer, que não têm consciência clara do viés de que são portadores – é bom lembrar que ter um viés não é propriamente um problema, até porque é impossível não ter nenhum -, e mantêm uma hostilidade a certas propostas e políticas públicas que, curiosamente, são legitimamente desejadas por grande parte dos brasileiros.
Mas decisões judiciais equivocadas podem ser revertidas; ministros podem ser responsabilizados perante o Legislativo; e o público pode rejeitar uma imprensa vista como tendenciosa. São todos problemas que há como resolver sem tensões institucionais e sem o menor risco de ameaça à democracia. Aliás, por mais errados que em um caso particular alguns dos agentes públicos destes poderes esteja, não parece haver intenção de quebrar a ordem constitucional. E mesmo quando são críticos ao que vêem como abusos da parte do Executivo, não se tem visto da parte deles qualquer discurso para pôr em tela de juízo a moldura democrática e institucional. O que vem do Planalto, infelizmente, é de outra natureza, a começar pela apologia que Bolsonaro faz da ditadura militar, além das declarações de pessoas próximas ao presidente, inclusive de dois de seus filhos, defendendo abertamente regimes de força. Os outros pontos já sinalizamos acima. Baste mencionar que as agressões verbais demonstram uma enorme dificuldade de conviver com a crítica, e o tratamento discriminatório dado a meios de comunicação repete o ocorrido em outros regimes autocráticos. Felizmente ainda estamos principalmente, mas não totalmente, no plano das palavras e o presidente tem respeitado as decisões do Judiciário e do Legislativo. Isso, no entanto, não minimiza o fato de que, mesmo ressalvando-se a possibilidade da boa-fé, uma tensão institucional desnecessária, profundamente perniciosa e grave esteja sendo irresponsavelmente provocada.
É necessária, principalmente da parte do presidente e de seus inúmeros qualificados assessores, uma guinada radical em direção à aceitação plena da dinâmica democrática e do respeito incondicional a todos os brasileiros, mesmo daqueles que defendem idéias muito diferentes das suas.
Só essa guinada permitirá ao país, que já vive instabilidade suficiente causada por uma pandemia global, a pior dos últimos 100 anos, não naufragar em uma turbulência política totalmente evitável e contornável.