Enquanto, em Berlim, o Brasil derrotava a Alemanha em um amistoso que nem de longe terá o condão de apagar a vergonha da semifinal da Copa do Mundo de 2014, um outro 7 a 1 começou a se desenhar no Supremo Tribunal Federal. Também na terça-feira, o ministro Dias Toffoli concedeu uma liminar que retirou a inelegibilidade do ex-senador Demóstenes Torres, dando-lhe a possibilidade de disputar as eleições de outubro. A decisão ainda precisa passar pela Segunda Turma do STF e, embora algumas circunstâncias do caso do goiano sejam um pouco diferentes, é impossível não pensar em um outro político hoje inelegível, mas que aposta na confusão da população e em uma liminar de tribunal superior para jogar a legislação no lixo.
Em julho de 2012, Demóstenes, então senador pelo PTB de Goiás, foi cassado por seus pares, em votação secreta, por quebra de decoro parlamentar. Ele teria usado o mandato para favorecer Carlinhos Cachoeira e mentido sobre suas relações com o bicheiro. Com a cassação, Demóstenes também teve suspensos seus direitos políticos até 2027 – o correspondente ao intervalo de oito anos após o fim do seu mandato. Mas em 2016 o STF anulou provas que incriminavam o ex-senador nas operações Vegas e Monte Carlo, e com isso Demóstenes fez dois pedidos à corte suprema: queria não apenas que sua inelegibilidade fosse afastada, mas também pretendia retomar o mandato que tinha sido cassado.
O que Toffoli fez foi passar por cima da Lei Complementar 64/1990, que trata das inelegibilidades
Toffoli negou o segundo pedido, alegando que a independência entre os poderes não lhe permitia anular uma decisão tomada pelo Senado em um processo que correu dentro da legalidade. Mas esse mesmo argumento não impediu Toffoli de conceder o outro pedido de Demóstenes, afastando a inelegibilidade que era consequência daquela mesma decisão do Senado. Pela argumentação do ministro, a liminar se justificaria pela urgência, já que o prazo para Demóstenes se licenciar do cargo de procurador do Ministério Público em Goiás (do qual ele tinha sido suspenso no fim de 2012 e que retomou em 2016) a fim de disputar as eleições expira no próximo dia 7.
No fundo, o que Toffoli fez foi passar por cima da Lei Complementar 64/1990, que trata das inelegibilidades. Ela diz com todas as letras em seu artigo 1.º, inciso I, alínea b), que estão inelegíveis para qualquer cargo “os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais, que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência do disposto nos incisos I e II do artigo 55 da Constituição Federal”. A quebra de decoro que levou à cassação de Demóstenes é justamente a hipótese contemplada no inciso II do artigo 55 da Carta Magna. Se a inelegibilidade é consequência da cassação, e se a cassação foi considerada legal por Toffoli, não haveria razão para afastar seus efeitos. A decisão lembra a gambiarra jurídica que permitiu a Dilma Rousseff sofrer o impeachment sem ficar inabilitada para o exercício de cargo público, ainda que o artigo 52 da Constituição deixe claro que é impossível separar uma coisa de outra.
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A inelegibilidade de Demóstenes e a inelegibilidade de Lula derivam de situações diferentes. O ex-senador goiano estava inelegível como consequência de sua cassação (artigo 1, I, b da Lei Complementar 64), uma hipótese que já estava prevista bem antes da Lei da Ficha Limpa. Já o ex-presidente está inelegível por ter sido condenado em segunda instância por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro (artigo 1, I, e da Lei Complementar 64). Mas a decisão de Toffoli mostra que, se uma inelegibilidade pode ser afastada assim, de qualquer jeito – porque o ministro praticamente não diz uma palavra sobre os motivos pelos quais Demóstenes teria um “direito” a ser candidato, já que a lei determina exatamente o contrário – quem garante que uma outra inelegibilidade também não pode ser afastada?
São decisões como esta que fazem muitas pessoas considerarem que o Supremo está deixando seu papel de guardião da Constituição para se tornar promotor da insegurança jurídica no país. Especialmente em um assunto tão fundamental como o combate à corrupção, é absolutamente necessário que a lei seja efetivamente cumprida no Brasil. O Supremo não pode se comportar como loteria imprevisível, em que nunca se sabe quando algum ministro sacará do chapéu uma liminar ou um salvo-conduto que torne a lei irrelevante. Que a Segunda Turma corrija, assim que possível, a decisão monocrática de Toffoli – e, mais do que isso, que Demóstenes não sirva de ensaio para Lula.
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