O Cine PE Festival Audiovisual, um dos principais festivais de cinema do Brasil, realizado no Recife, ainda está sem data para ocorrer. Originalmente previsto para começar em 23 de maio, foi adiado pela organização após o protesto de cineastas que retirarem sete filmes do festival. Mas o que tanto incomodou os diretores de Abissal, A menina só, Baunilha, Iluminadas, Não me prometa nada, O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras e Vênus: Filó, a fadinha lésbica, a ponto de eles optarem por não exibir seus filmes?
Os cineastas não quiseram ter suas produções exibidas no mesmo festival que também havia selecionado o documentário O Jardim das Aflições, sobre o filósofo Olavo de Carvalho, e a ficção Real – O plano por trás da história, romantização da criação do Plano Real, em 1994. Segundo um dos diretores responsáveis pelo protesto, a organização do festival estava dando espaço à “direita extremista”.
Os cineastas fizeram justamente aquilo de que acusam os realizadores do filme sobre Olavo de Carvalho
De imediato, a ação dos cineastas prejudica o próprio público do festival, privado de ver não apenas as sete produções retiradas do evento (estuda-se uma exibição ao ar livre, paralela ao festival), mas todas as demais: o Cine PE exibe apenas poucas dezenas de filmes e a saída de sete deles força a organização a buscar substitutos para não esvaziar o festival, o que leva tempo. No entanto, há muito mais na atitude dos cineastas.
Pode-se argumentar que é seu direito não querer ter sua obra associada a outras que promovem ideias das quais se discorda – ainda que seja tarefa árdua descrever que tipo de “extremismo” há em O Jardim das Aflições e, especialmente, em Real. Até onde se sabe, os cineastas não exigiram que o festival rejeitasse os dois filmes, tendo apenas retirado as próprias produções – por mais que, na prática, a ação tenha inviabilizado o evento, mesmo que temporariamente. Mas será tudo mera questão de livre escolha dos cineastas?
Gabi Saegesser, diretora de Iluminadas, alegou que O Jardim das Aflições “vai contra qualquer possibilidade de diálogo”. Mas quem evita o diálogo são justamente os cineastas que se retiraram do festival, recusando-se a dividir a mesma tela com visões das quais discordam. Ela chegou a afirmar que a inclusão do documentário no Cine PE “é como se desrespeitasse a visão política e social de outros filmes”. O raciocínio implícito é o de que os diretores gostariam de ver no festival uma absoluta unidade político-ideológica (e eles nem consideram a hipótese de o teor de seus próprios filmes “desrespeitar a visão política e social” de outras produções ou da plateia). Mas não é para isso que tais eventos servem. O Cine PE, ao exibir filmes de diversos matizes, seria uma chance de fomentar o debate. Mas os cineastas preferiram isolar-se a engajar-se em uma conversa produtiva – fazendo justamente aquilo de que acusam os realizadores do filme sobre Olavo de Carvalho.
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Não à toa o historiador e cineasta de esquerda Cleonildo Cruz atacou os diretores por sua atitude de “patrulhamento” e “intolerância político-cultural”, dizendo que “precisamos sair da bolha. Falar além dessa retórica que só empregamos para os nossos” e citando exemplos de eventos recentes que reuniram o juiz Sergio Moro (descrito por Cruz como “juiz parcial da Lava Jato”) e Dilma Rousseff.
Em meados da década de 90, Joseph Overton desenvolveu o conceito que depois ficou conhecido como “janela de Overton”: um “intervalo” dentro do qual estariam as ideias consideradas “aceitáveis” (Overton pensava no discurso que um político precisaria adotar para ser viável eleitoralmente), e fora do qual estariam posições tidas por “radicais”, “extremas” ou “inaceitáveis”. Esta janela, no entanto, pode mudar de posição, ser alargada ou estreitada. Uma distorção (normalmente provocada pela ação de grupos de pressão) pode fazer uma ideia perfeitamente razoável passar a ser vista como “extrema”, enquanto a defesa de verdadeiras barbaridades pode ser vista como perfeitamente normal. O episódio do Cine PE mostra como, no mundo cultural brasileiro, a “janela de Overton” está tão deslocada para a esquerda que qualquer outra posição é classificada como “extremista” e seus defensores não servem nem mesmo como interlocutores legítimos. Uma atitude que apenas prejudica a vida intelectual do país.