Certamente não há hoje nenhum brasileiro que tenha vivido na época do voto censitário que vigorou durante o Brasil Império. Criada na Constituição de 1824 e abolida na de 1891, a regra estabelecia um patamar mínimo de renda para que um homem (as mulheres eram excluídas do processo) pudesse votar. Mas muitos poderão se recordar de um tempo em que mendigos e analfabetos não podiam ir às urnas – para aqueles, a proibição acabou em 1946; para estes, só em 1985. Terá sido essa memória que inspirou um dos itens de uma cartilha elaborada pela Associação Comercial, Industrial e Empresarial de Ponta Grossa (ACIPG), com proposições direcionadas aos candidatos das eleições de outubro? Entre outras reivindicações bem mais sensatas, há a da "suspensão do direito ao voto para beneficiados de qualquer programa de transferência direta de renda, nas esferas municipal, estadual e federal".

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Mas que não se pense que a ACIPG quer a volta do voto censitário, ou tenha preconceito contra os pobres que recebem dinheiro de programas como o Bolsa Família. O presidente da entidade, Nilton Fior, afirmou à Gazeta do Povo que a proposta quer garantir a lisura do processo eleitoral, pois os beneficiários poderiam estabelecer um certo vínculo com os governos que concedem a renda. Em outras palavras, a argumentação reforça a noção de que a redistribuição de renda pode ser uma forma torta de compra de votos. Fior ainda diz que boa parte dos candidatos da região viu a ideia com bons olhos quando ela foi apresentada pela ACIPG. Mas, por algum motivo, recentemente ficou mais difícil encontrar quem a defenda.

Ora, se a ideia é impedir que o voto seja motivado por algum tipo de "gratidão" do beneficiário para com o governante de plantão, por que parar nos pobres que participam dos programas de transferência de renda? Que se excluam também do processo eleitoral os funcionários públicos, especialmente os comissionados, cujo emprego depende diretamente da boa vontade do governante. Além disso, o poder público também concede benefícios, subsídios e isenções fiscais a várias empresas e setores, muitas vezes viabilizando a instalação de unidades em certos locais, ou dando-lhes condições para competir no mercado. Os proprietários, diretores, gerentes, funcionários e acionistas dessas empresas deveriam, também eles, ter impedido seu acesso à urna. E que tal vetar todos os envolvidos com empresas e ONGs que assinam contratos com governos, nas três esferas?

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Assim, devidamente removidos do processo eleitoral todos aqueles que poderiam ter algum "vínculo" com qualquer governo por receber dele algum benefício ou ter alguma relação contratual, poderiam ir às urnas... apenas algumas almas elevadas, livres de qualquer ligação, mínima que seja, com o poder público, que votariam sempre guiados unicamente pelo altruísmo, bloqueando completamente a interferência de suas convicções e circunstâncias pessoais no momento de apertar as teclas.

Acordando do devaneio, é preciso dizer com firmeza: não, democracia não é isso. É claro que a compra de votos tem de ser combatida; é claro que todos precisamos nos conscientizar para que não menosprezemos o voto e saibamos que essa escolha tem consequências sobre toda a sociedade; e é claro que a ACIPG tem todo o direito de defender propostas como a da cartilha. Sabemos que candidatos e governantes inescrupulosos podem se aproveitar de políticas públicas para se promover ou atacar seus adversários (basta ver a frequência com que se afirma que este ou aquele candidato, se eleito, vai acabar com este ou aquele programa). Mas não é cassando o direito ao voto que se aperfeiçoa a democracia. Os brasileiros não lutaram por décadas pelo sufrágio universal para ver esse avanço revertido. Cada um tem o direito de levar à urna suas convicções, suas circunstâncias e, por que não?, suas gratidões e lealdades.

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