Abuso sexual de crianças e adolescentes não é só um saldo da pobreza ou de distúrbios psíquicos dos abusadores. É questão cultural, tolerada e consentida por todos os que se calam diante da instrumentalização da infância

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A atriz e apresentadora Xuxa Meneghel causou o estardalhaço que uma figura conhecida costuma provocar: uma onda de discussão nacional, acentuada por dizer respeito a um assunto rondado de silêncios e incompreensões. Há de se considerar que dificilmente o gesto de Xuxa vai mudar o quadro de abusos à infância e adolescência no Brasil. Trata-se de um crime delicado, praticado à custa de nuances cotidianas, o que leva os especialistas a destacarem a inteligência absurda com que agem os abusadores. Não é tema para ser tratado com amadorismo, o que costuma levar à histeria coletiva, como de resto em questões abordadas de forma ingênua.

O que se deve considerar é que o abuso sexual de crianças é saldo da mesma cultura que defende a surra e justifica o abandono. Não se vai superar do dia para a noite nossa herança ibérica – herança que não reconhece o direito à infância, julgando legítima lançá-la antes da hora na vida adulta. Exagero? Basta acompanhar a ferocidade com que tantos pais reivindicam o direito de bater em seus filhos, refutando qualquer intervenção do poder público. O direito a educar pela pedra, não raro, esconde a crença de que se pode fazer qualquer outro uso de "algo que lhes pertence".

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Deve-se lembrar o esforço do país em coibir a violência contra meninos e meninas ainda em formação. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1991, resultou de um amplo debate de educadores, ativistas do movimento social, alertando, desde os seus inícios, para questões como o abandono e a pedofilia. Ainda hoje, contudo, não é difícil encontrar quem considere uma distorção sem par a afirmação de que no Brasil a violência sexual é não só frequente como maquiada e tolerada.

A realidade dos abrigos que o diga. Ali, relatos de abuso sexual são comuns. O fato de esses depoimentos virem das camadas mais vulneráveis, infelizmente, cria a impressão de que se trata de um problema situado numa classe específica. A carência financeira levaria ao desamor, à baixa estima e ao uso do sexo como moeda de troca. Trata-se de uma meia-verdade. Há muitos indícios de que o abuso acontece tanto entre os miseráveis quanto entre ricos e médios. E que suas motivações não são apenas patológicas ou sociológicas, mas culturais, o que explica a dificuldade em inibi-la.

É bastante confortável alardear que os casos de abuso são filhos da pobreza e de "mentes doentias", redimindo os demais de pensarem sua responsabilidade na instrumentalização sexual de crianças e adolescentes. A exposição dos pequenos ao erotismo desenfreado, comercial, é parte dessa contradição da qual todos participam e reflete a resistência em admitir a criança e o adolescente como sujeito de direito, respeitando seu tempo de maturação, protegendo-a de fato.

A propósito, os números soam estarrecedores, mas com certeza representam "um avo" do que realmente são. Dados do Ministério da Saúde de 2011 revelam que o abuso sexual responde por 35% das notificações de violência contra crianças de até 10 anos. O abandono corresponde a 36% das queixas. Acima de 10 anos os casos registrados tendem a diminuir, por motivo óbvio: o abusador tem menos poder de negociação à medida que sua vítima se aproxima da adolescência.

Depois da declaração de Xuxa, o assunto voltou à tona. Mas vai passar. Deve permanecer em alta frequência apenas nos consultórios de psicologia. É íntimo demais. Não tende a ser escancarado. Há remédio nas leis – e se espera que sejam cumpridas – e questões que dizem respeito a esse drama das entrelinhas: gravidez adolescente, drogadição, evasão escolar, entre outros parceiros desse mal secreto que insistimos em subestimar.

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