Há uma profunda e persistente imagem do Brasil, que gerou um quadro comum de pensamento e marca muito de nossa compreensão própria e das escolhas coletivas que fazemos como sociedade: a imagem de uma nação perpassada pela subordinação. Primeiro a subordinação administrativa da colônia à metrópole europeia, seguida da subordinação política ao imperialismo inglês, passando pela subordinação ao capitalismo financeiro até meados do século XX. Tudo isso teria operado para gerar pobreza interna e transferir riquezas da periferia para o centro do sistema mundial. Ao mesmo tempo, para dar conta de explicar esse atraso crônico, a atenção dos estudiosos recaía sobre o setor de exportações e o governo central, em detrimento do mercado interno de subsistência, pouco dinâmico, e dos governos locais, relegados ao esquecimento de um interior supostamente imobilizado pelo atraso.
Felizmente, essa visão simplista, baseada em dualidades esquemáticas e sedimentada no discurso público e na maioria dos livros escolares, começou a mudar ainda timidamente nos anos 1970, a partir de estudos especializados na história e na antropologia e das técnicas modernas de econometria, ganhando força a partir dos anos 1990, com o abandono dos velhos debates engessados e enviesados pela sombra do muro de Berlim. Gestada um tanto escondida da opinião pública, a nova visão de Brasil que emerge desse caldo encontra agora sua grande síntese no livro do historiador Jorge Caldeira, “A História da Riqueza no Brasil”, que explora, com todo o rigor metodológico e a prosa clara herdada do jornalismo, uma pletora de novos dados e fontes primárias que revelam nada menos que um novo país.
O Brasil pode acertar as contas com seu passado
Essa mudança começa por uma profunda reavaliação do período colonial brasileiro. O processamento digital de dados antes esparsos e o refinamento estatístico fazem surgir um Brasil que, no final do século XVIII, já tinha uma economia bem maior que a portuguesa e independente dos ciclos recessivos desta; um Brasil que consumia a maior parte dos produtos importados por todo o reino e gerava a maior parte das receitas dele; e um Brasil cujo mercado interno respondia por mais de 80% da riqueza da nação. Os estudos demográficos, que revelam um país de maioria de homens livres – os “empreendedores individuais” –, seguidos por um gradiente de pequenos proprietários de escravos até chegar aos latifúndios, e a antropologia mais moderna, que mostrou que as sociedades indígenas, mesmo sem moeda, eram capazes de produzir e comercializar excedentes, ajudam a compor o verdadeiro tecido que sustentava essa sociedade de comércio interno vivo e que se organizava em governos locais baseados em costumes e tradições que sustentavam esse dinamismo pujante muitas vezes incompreendido por Lisboa, Salvador, Rio de Janeiro – e Brasília.
Para se ter uma ideia, Brasil e Estados Unidos tinham mais ou menos o mesmo tamanho no início do século XIX: ambos exportavam cerca de 4 milhões de libras esterlinas anuais, a população norte americana era apenas 20% maior que a brasileira, a proporção entre escravos e homens livres era semelhante em ambas as sociedades e o peso do mercado interno era comparável entre ambas. No final do século, um fosso já se havia aberto entre os países: entre 1820 e 1890, a renda per capita brasileira foi de 670 dólares anuais para 704 anuais, enquanto a norte-americana passou de 1,3 mil para 4 mil; a população brasileira cresceu de 4,4 milhões de habitantes para 14 milhões, enquanto a americana saltou de 5 milhões para 63 milhões. Embora a exportação de produtos agrícolas continuasse dominando a pauta de exportações de ambos os países no final do século, o crescimento interno americano sustentou um processo de industrialização que, em 1890, já respondia por 41% da produção econômica. No agregado, a economia dos Estados Unidos passou a ser 15 vezes a brasileira.
No Brasil, a epopeia do Barão de Mauá mostra bem a janela de oportunidades que o Brasil perdeu não por fatores externos, mas por escolhas equivocadas de seus próprios governantes contra a pujança e a criatividade de seus próprios cidadãos. Por trinta anos, Mauá teve de remar contra um governo central altamente burocrático, dominado por ministros de pensamento mercantilista que escassearam o crédito e encareceram a moeda e ainda fizeram de tudo para minar os empreendimentos do empresário. Sua famosa “Exposição aos Credores” poderia ser, ainda hoje, o testamento de qualquer empresário inovador.
A análise da Primeira República também revela bem mais que meia dúzia de oligarcas lutando pelo poder. No período entre 1889 e 1930, a taxa de alfabetização saltou, o crescimento da indústria e dos transportes foi bem maior que o do café, puxado pela integração ao comércio internacional. Nessa época, todas as funções modernas do Estado, como redes de escolas, segurança pública, saúde e saneamento se consolidaram pela ação dos governos estaduais e de iniciativas locais pioneiras. E se, seguindo a tendência mundial, o governo parece ter acertado ao apostar no mercado interno como esteio do desenvolvimento a partir de 1930, o Brasil, ao continuar apostando no estatismo de mão pesada que marcou governos desde o de Ernesto Geisel até o de Dilma Rousseff – em que pesem as reformas liberalizantes da década de 1990 –, vem perdendo muitas janelas de oportunidades criadas pela globalização, desde 1970, quando o comércio internacional passou a crescer em ritmo bem mais acentuado que as economias nacionais. A comparação com os resultados da China, que apostou na direção contrária ao Brasil, oferece a conta: em 1970, a economia chinesa era menor que a brasileira e hoje é sete vezes maior.
Misto de acertos e de erros, nem céu, nem inferno (nome inclusive de uma coletânea de Caldeira), o Brasil que se revela nos convida a assumir nossas responsabilidades individuais e coletivas, uma vez que a história não nos impôs destino algum; nos convida a superar polarizações simplistas em nossa compreensão própria, que sempre degeneram sectarismos políticos; e nos convida a estar vigilantes contra o imobilismo burocrático e atentos para iniciativas e empreendimentos locais, sempre mais próximos das reais necessidades e do dinamismo do nosso povo. É urgente que, de posse de novas informações e despido de velhos cacoetes mentais, o Brasil possa acertar as contas com seu passado para acertar os passos em direção ao futuro.
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