| Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Na contramão completa da renovação ocorrida nas duas casas do Congresso Nacional, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) tem grandes chances de voltar a comandar o Senado em fevereiro, quanto a nova legislatura tiver início. Calheiros foi um dos sobreviventes do fenômeno que negou a reeleição a senadores veteranos, como Cristovam Buarque (PPS-DF) e Roberto Requião (MDB-PR), e não levou ao Senado candidatos cujo sucesso parecia líquido e certo, como a ex-presidente Dilma Rousseff (PT-MG).

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Que Calheiros tenha pretensões de voltar ao cargo que já foi dele por quatro mandatos (de 2005 a 2007 e de 2013 a 2017, compreendendo duas reeleições) já é um acinte por si só, agravado pelo fato de suas chances de vitória serem expressivas. A primeira passagem de Calheiros pela presidência do Senado acabou em escândalo: ele renunciou ao comando da casa para não perder o mandato, na esteira da revelação de pagamentos feitos por uma empreiteira à amante do senador, e que logo gerou uma avalanche de outras denúncias envolvendo uso de laranjas na aquisição de veículos de comunicação e emissão de notas frias. E, de volta à cadeira, em 2016 ele e o então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, costuraram o fatiamento da votação do impeachment de Dilma, que permitiu a cassação da petista sem retirar-lhe os direitos políticos, em flagrante desrespeito à Constituição. É verdade que Calheiros já não é réu no STF, tendo sido absolvido de uma acusação de peculato em 2018, mas ainda é alvo de vários inquéritos e investigações, inclusive dentro do âmbito da Operação Lava Jato.

Decisão judicial se cumpre, por mais equivocada que seja, e depois se contesta pelas vias ordinárias

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A votação secreta para a presidência da casa, prevista no artigo 291 do Regimento Interno, certamente beneficia Calheiros; seus colegas ficam livres para apoiar figura tão nefasta sem ter de prestar contas a seu eleitor. Isso levou o senador Lasier Martins (PSD-RS) a impetrar mandado de segurança no Supremo para que a votação fosse aberta. O ministro Marco Aurélio Mello, naquele mesmo fatídico dia em que mandou soltar todos os presos condenados em segunda instância, atendeu ao pedido de Martins e, em outra liminar, determinou a votação aberta em fevereiro.

Apesar dos argumentos empregados pelo ministro, que invocam o princípio constitucional da publicidade, o fato é que a decisão de Marco Aurélio cria uma intromissão do Poder Judiciário em algo que a própria jurisprudência da corte considera como assunto interno do Poder Legislativo, violando a separação entre poderes que é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. O constituinte se calou quanto ao modo de escolha do presidente do Senado, justamente por reconhecê-lo como uma questão puramente interna, definida por regimento cuja elaboração a Constituição atribui ao Senado, pelo inciso XII do artigo 52. Isso significa que, por mais desejável que seja uma votação aberta, realizá-la dessa forma é uma decisão que compete apenas aos próprios parlamentares – e o senador Martins, autor do mandado de segurança, é também autor de um projeto que altera o Regimento Interno do Senado neste sentido.

Por mais errado que esteja o ministro Marco Aurélio em sua liminar, a Mesa Diretora da casa parece estar disposta a cometer um erro ainda maior, pois informações de bastidores dão conta de que os senadores pretendem levar adiante a votação secreta em 1.º de fevereiro. Decisão judicial se cumpre, por mais equivocada que seja, e depois se contesta pelas vias ordinárias, algo que, no caso atual, nem chegou a ser feito pelo Senado – o recurso contra a liminar foi apresentado pelo MDB e pelo Solidariedade. Esse choque aberto entre poderes, com o desrespeito explícito a uma determinação judicial, é uma das piores ameaças à democracia em um país.

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E a possibilidade de que isso ocorra mostra que nem Marco Aurélio, nem o Senado aprenderam com um episódio semelhante em 2016. Naquele ano, o Supremo havia formado maioria no sentido de que um réu não poderia estar na linha sucessória da Presidência da República, mas o julgamento não tinha sido concluído devido a um pedido de vista. Isso não impediu a Rede Sustentabilidade de pedir ao STF que removesse Calheiros da presidência do Senado (cargo que o colocava na linha sucessória), pois o alagoano tinha se tornado réu por peculato em novembro. Marco Aurélio concedeu a liminar no início de dezembro, dando início a uma crise institucional. Calheiros usou de todos os meios possíveis para não receber a notificação judicial, e o Senado se recusou a cumprir a liminar.

Foi preciso que o plenário do STF se reunisse para derrubar parcialmente a decisão de Marco Aurélio. Os ministros resolveram que Calheiros realmente não poderia assumir a Presidência da República, mas devolveram o comando do Senado alagoano, alegando justamente a impossibilidade de interferência em assunto interno da casa. A ação do plenário, no entanto, não está disponível no caso atual, pois o STF só volta do recesso em 1.º de fevereiro, mesmo dia da eleição no Senado. Apenas o presidente da corte, Dias Toffoli, pode derrubar a liminar de Marco Aurélio a tempo de impedir uma nova crise entre poderes.

Marco Aurélio, sempre disposto a falar à imprensa sobre processos que julga, já adiantou que repudia a possibilidade de ter sua decisão novamente derrubada por Toffoli, como ocorrera no caso dos condenados em segunda instância. “Como vamos partir para essa autofagia? Isso só ocasiona descrédito para a instituição”, afirmou. Ora, não pode haver descrédito quando a instituição corrige seus erros. Descrédito existe quando um ministro transforma sua vontade pessoal em regra geral, tomando decisões que desrespeitam o colegiado ou afrontam a independência entre poderes. Mesmo assim, não cabe ao Senado atuar como revisor de liminares. Que desta vez haja mais lucidez entre os atores desse imbróglio, para que o país não chegue ao ponto de ruptura do qual se aproximou perigosamente anos atrás.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]