A internação involuntária dos usuários de crack é um recurso extremo, mas não deveria ser descartado como uma oportunidade de recuperar sua dignidade
Na segunda-feira, o município de São Paulo iniciou uma nova política de atenção aos dependentes de crack, com a instalação de um plantão judiciário para acelerar os processos de internação involuntária ou compulsória de dependentes da droga a internação involuntária é aquela feita sem o consentimento do usuário, mas a pedido de sua família, muitas vezes como um último grito de socorro diante do drama humano causado pelo vício; a compulsória é determinada pela Justiça e independe tanto da vontade do dependente quanto da solicitação de parentes.
A controvérsia não é exatamente jurídica. A possibilidade de internação involuntária ou compulsória é prevista pela Lei 10.216, de 2001, que estabelece uma série de exigências, como determinação judicial, avaliação médica e aviso ao Ministério Público. Tudo isso vem sendo seguido em São Paulo. Mas a medida é polêmica porque coloca em choque dois princípios bioéticos: o da beneficência (fazer o bem) e o da autonomia (o respeito à vontade do indivíduo). É a escolha sobre qual destes princípios deve prevalecer que opõe defensores e opositores da internação involuntária.
As características específicas do crack, como seu poder de viciar em pouquíssimas doses e seus efeitos no corpo, levam o dependente a uma espiral de degradação. O organismo passa a viver em função do consumo da droga, que causa emagrecimento, lesões pulmonares e problemas cardíacos, levando ao enfraquecimento do indivíduo, que fica mais vulnerável a doenças como tuberculose e pneumonia. A necessidade de fumar dezenas de pedras por dia faz o usuário se desfazer de seus bens ou recorrer à criminalidade de forma quase inconsciente para manter o vício um dependente, levado pela mãe ao plantão judiciário na terça-feira, chegou a vender uma moto por R$ 50.
Está suficientemente claro que o crack compromete quase que completamente a autonomia de quem o usa. Se é verdade que há casos em que o dependente, em um raro momento de lucidez, procura ajuda por conta própria e o plantão judiciário paulistano já registrou tais situações , é utópico esperar que todo usuário tenha tamanha força de vontade. Contestar a internação forçada evocando a primazia da autonomia individual, portanto, seria basear a argumentação em algo que, na maioria das situações, é mera ficção.
Diante de um triste cenário como esse, como não lançar mão de todos os recursos à disposição para que um dependente tenha a chance de recuperar sua dignidade? Em muitos casos, a alternativa à internação involuntária seria deixar o viciado seguir seu processo de autodegradação, o que representaria um risco real à vida do dependente de crack, dado o potencial letal da droga.
No entanto, a defesa da autonomia não é o único argumento contrário à internação involuntária. As acusações de "higienismo" também são comuns entre os críticos dessa política, para quem o poder público estaria interessado meramente em remover os viciados da vista dos demais cidadãos. Tais insinuações, entretanto, deixam transparecer uma preocupação maior com o paradigma da luta de classes que com o drama do usuário de crack, ao não oferecer uma alternativa viável que permita sua recuperação. Por outro lado, é fundamentado o temor de que os dependentes sejam meramente recolhidos a "depósitos de viciados", sem receber os cuidados adequados. Cabe às famílias, ao Ministério Público e às organizações da sociedade civil fiscalizar para que os indivíduos internados contra sua vontade tenham condições de abandonar o vício, recuperando o controle de sua vida.
Não se pretende, aqui, ver a internação involuntária como a panaceia que resolverá o problema do crack. Sem dúvida, é preciso investir maciçamente em programas de prevenção e repressão ao tráfico, mas também é necessário dar uma resposta àqueles que já são vítimas da dependência, e a suas famílias. Assistir impassivelmente a uma vida humana se desfazendo não é uma opção. Os opositores da internação compulsória também apontam com razão que muito do êxito dos programas de recuperação depende da vontade do paciente, e que as taxas de sucesso entre aqueles internados à força são baixíssimas. Mas argumentar assim é tratar pessoas como números. Para aqueles que foram recolhidos contra a vontade e venceram o vício, a ação que muitos veem como uma "violação da autonomia" representou a diferença entre a vida e a morte. Não é pouca coisa.