O Brasil está perto de ter uma nova Lei de Falências e Recuperação Judicial, que já está na mesa do presidente Jair Bolsonaro para sanção após a aprovação no Senado. O entendimento sobre a função e importância de uma lei que regule o processo de recuperação judicial ou mesmo decretação de falência de uma pessoa jurídica pressupõe conhecer o significado do conceito de “empresa” para a economia e o bem-estar social, como se dá o processo operacional das pessoas jurídicas e qual o caminho mais vantajoso e justo no âmbito da vida econômica e social. O conhecimento dos conceitos que servirão de premissas é fundamental para a tomada de decisão sobre a legislação a ser aprovada sobre a matéria.
De início, o único ser social e moral é o ser humano, pois é dotado de razão, inteligência, discernimento e capacidade de distinguir entre os atos moralmente bons e os maus, os justos e os injustos. O animal homem é o único capaz de submeter suas decisões e atos a um código de censura interior a partir de perguntas do tipo “como viver?”, “que devo fazer?”, “o que posso possuir?”, “como tratar o semelhante?”. Na linguagem do Código Civil brasileiro, esse ser humano é chamado de “pessoa natural” e tem sua vida em sociedade regulada por códigos e leis que devem refletir a conduta geralmente aceita e aprovada.
O ser humano dispõe dos recursos da natureza, dos bens de produção que ele próprio construiu (edifícios, casas, máquinas, equipamentos e ferramentas diversas), de sua força de trabalho e sua capacidade de iniciativa – conjunto que os economistas chamam de “os quatro fatores de produção” –, com os quais produz o imenso conjunto de bens materiais e serviços destinados a satisfazer suas necessidades fisiológicas, emocionais e do espírito. A pessoa natural pode trabalhar apenas vendendo sua força de trabalho no mercado ou pode se unir em sociedade com outras pessoas naturais, para construir unidades de produção que reúnem os quatro fatores de produção e passam a ter vida no mundo jurídico, econômico e social.
É do interesse da sociedade e vantajosa para a economia a existência de legislação que crie condições para que uma empresa possa se recuperar, principalmente para aquelas empresas que não se tornaram insolventes por fraudes e desvios
Uma das grandes invenções da humanidade foi a criação da “empresa”, uma pessoa jurídica constituída sob as formas disciplinadas pela lei, que passa a ter vida no mundo jurídico, econômico e social pelos atos de investir, contratar, produzir, comprar, vender, tomar empréstimos, pagar tributos e outros. A pessoa jurídica surge, assim, dotada de existência legal por uma espécie de certidão de nascimento (o contrato social ou outro instrumento de sua constituição), sempre e necessariamente tendo como sócios ou instituidores as pessoas naturais ou outras pessoas jurídicas. A direção da pessoa jurídica e todos os atos por ela executados são decididos e administrados por pessoas naturais, na figura de seus dirigentes, aos quais se aplicam as leis da empresa e os demais códigos (civil, tributário, penal etc.). A mesma pessoa jurídica pode ser gerida e operada por pessoas naturais variadas, que mudam no tempo conforme as regras previstas nas leis e nos atos constitutivos da empresa.
Por suas funções, a empresa serve à sociedade e consegue sua sobrevivência e crescimento por meio de resultado econômico positivo (receitas de vendas superiores aos custos de produção), o lucro, que é também a recompensa pela eficiência e cumprimento de sua função em satisfazer o consumidor, além da recompensa a seus empreendedores e acionistas pela iniciativa, assunção de risco e utilidade social.
É com essa configuração que, atuando sob condições de incerteza, competição e riscos diversos, uma empresa pode ser atingida por dificuldades e desequilíbrio financeiro pelas mais variadas razões: problemas de mercado, catástrofes, crises econômicas, mudanças na lei, incompetência de seus donos e/ou dirigentes, fraudes e desvios morais ou legais etc. Assim, é do interesse da sociedade e vantajosa para a economia a existência de legislação que estabeleça as normas legais do processo empresarial e crie condições para que uma empresa possa se recuperar caso seja prejudicada por razões jurídicas, institucionais e econômicas, principalmente para aquelas empresas que não se tornaram insolventes por fraudes e desvios.
Mesmo no caso das pessoas jurídicas prejudicadas por sócios ou dirigentes que cometeram fraudes ou desvios, é inegável a necessidade de dispositivos legais que afastem da empresa os autores dos ilícitos e os punam com rigor; quanto à pessoa jurídica, as opções vão desde a ausência de punição, desde que a empresa passe a funcionar sob outros controladores, interventores e gestores, até a solução extrema, adotada em alguns países, em que o Estado se reserva o direito de tomar a empresa para si e confiscar o patrimônio dos sócios e dirigentes nos casos de fraudes e desvios, bem como proceder a venda da empresa e usar os recursos para reparar os danos provocados a terceiros, incluindo o fisco. O Brasil adota um meio termo: a Lei Anticorrupção, por exemplo, introduziu a possibilidade de responsabilização objetiva das empresas, e a Lei de Licitações prevê punições como a declaração de inidoneidade, que impede a empresa de realizar contratos com o poder público.
Uma boa lei de recuperação judicial e falência de pessoas jurídicas deve criar boas regras para: recomposição da empresa, repactuação de dívidas com fornecedores e credores financeiros, negociação com empregados, refinanciamento de dívidas tributárias e previdenciárias, ou seja, normas capazes de permitir a recuperação da empresa e a solvência de seus compromissos. A falência pura e simples, sem a possibilidade de recuperação, não é a melhor opção em face dos interesses de empregadores, fornecedores, bancos, fisco e, principalmente, se a empresa, como um sistema material, tem boas condições de produzir e cumprir sua missão. A lei aprovada pelo Congresso é um avanço em relação a esses aspectos e melhora o conjunto de dispositivos favoráveis à recuperação da empresa (um desses dispositivos é a inclusão do produtor rural na lei), cujos detalhes para cada segmento de credores e interessados já foram amplamente divulgados.
Uma Lei de Falências aprimorada já era uma necessidade havia alguns anos, mas a pandemia de Covid-19 e as medidas restritivas impostas para conter o coronavírus levaram centenas de milhares de empresas a fechar as portas – a maioria delas, de pequeno porte –, deixando ainda mais explícita a urgência de dispositivos legais que auxiliem empresários no momento mais difícil. Não à toa a equipe econômica queria ver a nova lei aprovada ainda neste ano. O país tem pressa, e felizmente o Congresso correspondeu.
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