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É tradicional de regimes autoritários que os problemas da nação sejam sempre atribuídos aos demais, e não a falhas do próprio governo. Assim, se a Venezuela, apesar de suas enormes reservas de petróleo, vive situações como apagões energéticos e escassez de produtos nos supermercados – chegando ao caso emblemático da falta de papel higiênico –, a culpa não poderia ser da desastrosa política econômica implantada pelo falecido Hugo Chávez e seguida por seu sucessor, Nicolás Maduro; é preciso buscar responsáveis em algum outro lugar.

O bode expiatório preferido dos bolivarianos, obviamente, é aquele grupo anônimo designado pelas alcunhas de "agentes do imperialismo", "inimigos históricos" e "fascistas". São eles que escondem os artigos de higiene em algum local desconhecido para que faltem nos mercados; são eles que sabotam as centrais elétricas venezuelanas. E foram eles, é claro, que causaram o câncer que acabou vitimando Chávez – como repetiu Maduro horas antes de anunciar a morte do caudilho, em março deste ano. Nisso, a Venezuela copia seus mestres cubanos e é copiada por outros regimes sul-americanos, como o argentino, que persegue economistas independentes que divulgam as próprias estatísticas de inflação, muito maiores que as oficiais, alegando que os números causam pânico na população.

A mais nova arma dos bolivarianos para fugir de suas responsabilidades pelo cenário atual venezuelano é culpar seus próprios cidadãos. Na segunda-feira, começou a funcionar uma linha telefônica dedicada ao denuncismo entre compatriotas. Agora, basta discar 0800-72268253 (na correspondência telefônica entre números e letras, tem-se "0800-sabotaje") para denunciar qualquer pessoa suspeita de estar tramando contra o bolivarianismo, a pátria, os governantes, enfim, qualquer "inimigo da pátria". O governo também criou uma conta no Twitter, a @NoAlSabotaje, com a mesma finalidade. Com isso, Maduro diz poder frustrar um "plano de colapso total" que estaria sendo preparado pela "direita venezuelana".

A Venezuela, assim, repete as experiências de países comunistas do Leste Europeu e da Ásia. Durante a Revolução Cultural chinesa, por exemplo, as crianças eram encorajadas a denunciar os próprios pais caso eles não fossem suficientemente entusiastas do comunismo. A julgar pelo anúncio de Maduro, a linha telefônica e a conta no Twitter estariam destinadas a receber exclusivamente denúncias de cunho econômico, mas, uma vez solto o monstro, estão lançadas as condições para uma verdadeira patrulha do pensamento. A "fiscalização" ficará a cargo dos movimentos sociais e conselhos comunitários bolivarianos. Serão esses grupos, ofuscados pela cegueira ideológica, capazes de diferenciar um "crime econômico" de uma opinião contrária ao governo? Ou verão em tudo indícios de conspiração, cujos responsáveis precisam ser punidos com rigor?

A criação de uma cultura de denuncismo tem consequências trágicas, pois leva a um ponto em que se destrói a confiança mútua, essencial para uma vida saudável em sociedade. E, se conseguir chegar a esse ponto, Maduro terá obtido uma triste vitória, mesmo sem resolver os problemas econômicos de seu país. Chávez conseguiu calar a imprensa que lhe fazia oposição, mas não erradicou a indignação popular, que deu à oposição quase metade dos votos na última eleição presidencial. No entanto, quando não se sabe se a pessoa ao lado, o colega de trabalho ou mesmo um familiar é um delator, os críticos tenderão a ser mais cautelosos, e virá o medo de expressar opiniões em público, um dos grandes trunfos dos totalitarismos.

Resta saber se os venezuelanos realmente embarcarão na paranoia desesperada de Nicolás Maduro, ou se perceberão a armadilha de longo prazo em que o aprendiz de caudilho quer capturar seus cidadãos. Um regime ditatorial como o venezuelano pode cair de um dia para o outro; consertar o estrago econômico causado pelas escolhas erradas dos bolivarianos pode exigir alguns anos; mas restaurar um clima em que se pode confiar nas pessoas leva muito mais tempo.

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