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 | Beto Barata/Presidência da República
| Foto: Beto Barata/Presidência da República

O candidato à vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, general Hamilton Mourão, causou celeuma quando lançou a ideia de uma nova Constituição, elaborada por uma “comissão de notáveis” e que seria submetida à aprovação popular por referendo. O candidato a vice ressaltou que a ideia de uma nova Carta Magna era exclusivamente sua, sem relação com as ideias de Bolsonaro nem com seu plano de governo. O que mais chamou a atenção foi sua defesa de um texto criado por constituintes que não fossem eleitos pelo povo, mas é preciso aproveitar a ocasião para discutir: precisamos mesmo de uma nova Constituição?

Nem sempre percebemos a força que tem uma Constituição democrática. Ela é fruto de um consenso entre diversas forças políticas, muitas vezes antagônicas, e esse fato lhe confere um caráter apaziguador. A Constituição, assim, não é apenas uma outra lei entre tantas, que apenas tem uma força legal maior que as demais. Ela é muito mais que isso: é um guia que norteia a convivência democrática e cidadã, estabelecendo a moldura dentro da qual se resolvem, de forma civilizada, os mais diversos conflitos que podem surgir em uma sociedade. A Constituição é a regra do jogo democrático.

E, quanto maior a turbulência, maior a necessidade de um ponto de apoio sólido. Que construtor, em uma área onde ocorrem muitos terremotos, construiria um prédio sem um alicerce ao mesmo tempo firme e flexível que aguentasse os maiores tremores? E que pessoas ou empresas aceitariam viver ou operar em um edifício que não tivesse essas fundações? E o Brasil vive um momento conturbado, cheio de terremotos. Não apenas por causa da maior crise econômica que o país já viu, mas principalmente porque os ânimos acirrados, consequência de anos de construção de um discurso de “nós contra eles” no período petista, estão se exaltando ainda mais nesta campanha eleitoral, e infelizmente nada indica que amainarão uma vez que as urnas tenham consagrado um novo governante.

Nem sempre percebemos a força que tem uma Constituição democrática

É nessas horas que o país mais precisa ter uma âncora, uma fundação que garanta a estabilidade na hora dos terremotos, de forma que o brasileiro sinta que há um ponto seguro ao qual se agarrar para enfrentar as intempéries. Esse alicerce é justamente a Constituição, que está acima de presidentes, de parlamentares, de ministros do Supremo. Querer uma nova Constituição em um momento sensível como esse seria justamente tirar do país essa baliza, seria lançar o Brasil na instabilidade completa, pois não seria de todo descabido imaginar uma Assembleia Constituinte polarizada a ponto de seus integrantes preferirem a paralisia ao consenso.

E aqui precisamos voltar à sugestão de uma “comissão de notáveis” feita por Mourão. Ela parece resolver a questão da paralisia causada pela polarização, mas na verdade acrescentaria a um caldo já explosivo o fato de não haver participação popular na definição dos que escreveriam a tal Carta. Quem escolheria os “notáveis”? Com que critério? Vale lembrar que a mais recente obra de “comissões de notáveis” no Brasil foi uma proposta de reforma do Código Penal, por iniciativa do então presidente do Senado, José Sarney, em 2012. O texto era tão nefasto que, em certos casos, dava menos valor à vida humana que à de um animal. Coube aos senadores eleitos pelo povo tentar consertar o projeto, que felizmente acabou engavetado.

Por mais que a proposta inclua um referendo popular que aprovaria ou rejeitaria o trabalho dessa comissão, o que Mourão ignora é que documentos como a Constituição precisam, em sua construção, de um envolvimento popular que vá muito além do “sim” ou “não” a um texto que já venha pronto. É preciso discutir, construir, buscar consensos, algo que só uma assembleia eleita pelo povo consegue fazer. 

Todas as considerações acima não significam, no entanto, que a Constituição não esteja acima de críticas. Muita gente boa e bem intencionada tem apontado problemas na Carta de 1988. O texto é extenso demais; abarca uma infinidade de assuntos que poderiam muito bem ser objeto de legislação ordinária; criou uma série de direitos sem deveres correspondentes, jogando tudo nas costas do Estado; engessou a administração pública ao estabelecer uma série de obrigatoriedades no uso do dinheiro; suas cláusulas pétreas têm um alcance que às vezes é indevidamente esticado para impedir alterações. Algumas ressalvas fazem sentido, outras são mais infundadas. Fato é que a Carta de 1988 é filha de seu tempo: após a redemocratização, era sumamente necessário dar ao Brasil uma nova Constituição e, como reação aos 20 anos de autoritarismo encerrados havia pouco, os constituintes buscaram consagrar no texto todos os direitos que puderam conceber, muitos dos quais haviam sido tirados dos brasileiros durante a ditadura.

Leia também: Para que serve a Constituição? (artigo de Egon Bockmann e Heloisa Câmara, publicado em 24 de abril de 2017)

Leia também: Dilma e a Constituinte (editorial de 17 de outubro de 2014)

Por mais que o Brasil não passe hoje por uma ruptura institucional que costuma provocar a edição de uma nova Carta, o país certamente mudou nesses 30 anos. Evoluímos na compreensão do funcionamento das contas públicas, por exemplo, e estamos identificando as bombas-relógio fiscais que comprometerão o Estado brasileiro no futuro, como a Previdência. Neste exato momento dobramos uma esquina importante no combate à corrupção e vemos a necessidade de leis que facilitem a punição dos responsáveis pela rapinagem do dinheiro do contribuinte. O flagelo da violência assumiu proporções aterrorizantes e o brasileiro vê prosperar a impunidade nos pequenos e nos grandes crimes, às vezes porque a lei burocratiza demais o funcionamento do sistema policial-jurídico-prisional.

Pensar em uma nova Constituição mais enxuta, menos burocratizante, que equilibre melhor direitos e deveres, plenamente adaptada à realidade atual não é uma posição absurda, e há pessoas e instituições de inquestionáveis credenciais democráticas que têm falado nisso. Mas a hora não é esta. Talvez em um momento de maior tranquilidade seja possível pensar em uma nova Constituição; por enquanto, a atual Carta Magna traz os mecanismos que permitem sua alteração em diversos pontos; eles podem e devem ser usados para que o texto seja aperfeiçoado aos poucos, por governos e legisladores respaldados pela vontade popular.

As eleições de 2018 ocorrerão apenas dois dias depois da comemoração do trigésimo aniversário da promulgação da Constituição de 1988. Que possamos escolher governantes e parlamentares com responsabilidade – inclusive para mudar a Carta Magna no que for necessário, mas sem lançar o país em novas aventuras de desfecho imprevisível.

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