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Para ser modificada a cidade precisa ser experimentada. Essa é a única maneira de criar novas relações simbólicas, vencendo o abandono que tem feito muitos centros urbanos serem entregues à ruína e à violência

Oito ou dez mil pessoas no Passeio Público fazem diferença? Os críticos mais severos à sociedade do espetáculo dirão que não. Terminada a festa – a exemplo da Vinada Cultural ou o lançamento de um livro do Dante Men­donça, para citar dois – tudo volta a ser como antes. Os eventos, diriam, têm o efeito de um traque.

Esse ponto de vista, por sorte, não é um consenso. Há quem veja a ocupação de espaços urbanos degradados para além da lógica funcionalista. Os resultados não precisam, e nem podem, ser urgentes, pois está se falando da construção de uma cultura urbana, e cultura, sabe-se, é como lavoura. Não segue receitas prontas, daí exigir trabalho contínuo e contra-ataque daqueles que nela acreditam. O novo Passeio Público, a nova Rua Riachuelo, a nova isso ou aquilo, em qualquer canto do mundo, nasce à custa de esforços confederados.

É de fato uma relação perigosa, em especial para os amantes de certezas, do ir e vir, sem pausa para o devaneio. Durante décadas o funcionamento das cidades pareceu como um assunto esotérico, da alçada de uns poucos iluminados, a quem cabia encontrar soluções como pontes e postes. O saldo dessa mentalidade é uma massa populacional acostumada a transferir o debate urbano para a barra da saia do poder público. Não se faz por mal: falta-nos ciência sobre a urbe.

Antes sim, fala-se sem freios dos males a que a cidade está exposta. A violência é o caso – sabemos identificá-la. Mas tropeçamos na hora de apontar saídas que não se refiram ao aumento de viaturas e de policiais. A mesma falta de imaginação acomete assuntos como uma grande mobilização urbana em favor de um espaço. Sabemos dizer que falta a presença das pessoas aqui e ali. Mas ignoramos como atraí-las, como mantê-las e como administrá-las, juntas, quando finalmente se reúnem, debaixo da ameaça da arruaça e do lixo.

Se a questão for entregue aos pesquisadores de urbanismo, por certo eles lembrarão que a cidade contemporânea se reinventa à custa da criação de redes. E de novos fluxos. Sem pessoas reunidas e sem ligações entre os espaços não há cidade possível. É arriscado, e daí? O contrário disso são estilhaços – bairros que não se ligam, guetos e hierarquias perversas, formando uma situação esquizoide que nada tem a ver com a vida urbana, num flagrante atentado ao espírito republicano.

Como escreve o antropólogo Olivier Mongin no livro A condição urbana, a cidade que merece esse nome é aquela que cria "dobras para dentro e para fora; que cria ligações entre o público e o privado". Viver no espaço urbano é criar "vincos", aos quais não se chega só com asfalto, mas tocando o imaginário e as relações simbólicas da população. Não é ciência exata, mas também. É um humanismo, mas não só isso. A cidade não se resolve apenas nas pranchetas dos arquitetos, mas também na mentalidade dos que a utilizam.

O nó entre o técnico e o simbólico só pode se dar de uma maneira – provocando a experiência urbana. Ela é a medida de todas as coisas. Pode não mudar o curso de uma rua, mas pode modificar seu uso e significado. Nesse sentido, ir ao Passeio e "provar" do Passeio é passaporte para mudar uma relação com esse marco da vida da capital.

É saborosa a fala da filósofa Olgária Mattos, da USP, estudiosa de cidades, ao dizer que os espaços urbanos nos reservam epifanias, revelações, a cada virada de esquina. Sorte de quem deixa acontecer. Os teóricos chamam a isso de "reterritorialização", uma palavra engenhosa para conclamar a "vida prática". Só vai descobrir o que uma cidade tem de singular aquele que tocá-la com os pés.

Com diz o mesmo Olivier Mongin, "o livro e a cidade se parecem". Pode ser lida como uma "cidade-museu", estanque, seleta, recortada, consumível, racionalista. Mas também pode ser lida como um romance povoado de personagens inesperados, aos quais o leitor se entrega com abandono. Nesse dia, decifra a gramática do espaço urbano. Fala sua língua. Discute, discorda e a ele se declara. Eis o princípio.

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