São dois colapsos em menos de um ano. Em abril de 2020, Manaus foi o primeiro retrato daquilo que a pandemia de coronavírus ameaçava causar nos sistemas de saúde do Brasil, com a superlotação dos hospitais da capital do Amazonas. Desta vez, o saldo é ainda mais triste: a demanda por oxigênio, causada pelos quadros mais graves de Covid-19, ultrapassou em muito a capacidade dos hospitais, e o resultado é aterrador: pacientes morrendo asfixiados, apesar dos esforços heroicos das equipes de médicos e enfermeiros.
Como resposta à emergência, o governo federal e alguns governos estaduais já providenciaram o envio de cilindros de oxigênio – uma operação bastante complicada devido à volatilidade e inflamabilidade do oxigênio, exigindo uma aeronave que apenas a Força Aérea Brasileira tem. Além disso, a empresa White Martins, que opera no Brasil e na Venezuela, deslocou parte do seu estoque de oxigênio no país vizinho para o Amazonas, em ação que foi imediatamente capturada pela ditadura bolivariana com fins midiáticos, como se fosse Nicolás Maduro, e não a iniciativa privada, a enviar ajuda aos brasileiros. Por fim, pacientes de hospitais manauaras estão sendo transferidos para outros estados.
A urgência é, sem dúvida, normalizar o abastecimento de oxigênio para evitar que mais pessoas morram clamando em agonia por algo tão corriqueiro quanto o ar. Mas não é menos importante encontrar os culpados por essa negligência criminosa
Depois do primeiro surto, logo no início da pandemia, chegou-se a acreditar que Manaus tivera pessoas contaminadas em número suficiente para se atingir a chamada “imunidade coletiva”, sensação que fora reforçada pela queda no número de casos, mas que médicos locais consideravam otimista demais. Agora sabe-se que essa estimativa era, de fato, exagerada. Além disso, dois fatores que contribuíram para o novo surto são a nova cepa do Sars-CoV-2, mais contagiosa, que foi identificada no Japão dias atrás, em pessoas que haviam estado em Manaus; e o relaxamento das medidas de prevenção, especialmente no fim de ano.
Muito mais previsível que o novo colapso dos hospitais de Manaus é a tentativa de capitalizar politicamente sobre a tragédia – no caso, apontando culpados. Por todo o seu conjunto da obra ao longo da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro apareceu como o bode expiatório óbvio. Nos últimos dias, não faltaram lembranças de que políticos e anônimos bolsonaristas incentivaram a reação popular contra medidas restritivas mais duras em Manaus, e comemoraram os protestos que levaram o governo do Amazonas a recuar.
Isso não pode ser minimizado. O coronavírus, sabe-se desde o início da pandemia, deixa em estado grave apenas uma fração dos contaminados. Para que ele leve um sistema de saúde ao colapso, é preciso que muitas pessoas estejam doentes ao mesmo tempo, o que só ocorre quando as medidas de prevenção são abandonadas. Mas, além deste incentivo a aglomerações no fim de ano e à mobilização popular contra as restrições, haveria outros graus de responsabilidade direta do governo federal ou de seus apoiadores? A União estaria ciente, por exemplo, da situação dramática da falta de oxigênio e teria sido negligente no fornecimento do insumo? Sem respostas a essa e outras perguntas, é precipitado, quando não oportunista, colocar a culpa única e exclusivamente sobre o governo federal e os bolsonaristas, ignorando outros atores e circunstâncias.
O que se sabe, de certo, é que dinheiro havia, graças ao programa de repasses federais a estados e municípios aprovado pelo Congresso para compensar a queda de arrecadação em tributos estaduais e municipais. Dados da União mostram que o Amazonas recebeu quase R$ 900 milhões apenas neste programa, que exigia a aplicação de parte do montante em ações de enfrentamento à pandemia. O Amazonas, aliás, foi um dos estados que teve superávit primário maior em 2020 que em 2019, graças a esse repasse. E também foi um dos estados onde houve denúncias de mau uso de recursos públicos no combate à pandemia. A Polícia Federal e o Ministério Público investigam um esquema que envolveria o governador Wilson Lima (PSC) e incluiu a compra, em abril de 2020, de respiradores com sobrepreço e inúteis para o tratamento da Covid-19 – a empresa vendedora era uma loja de vinhos.
A urgência é, sem dúvida, normalizar o abastecimento do insumo para evitar que mais pessoas morram clamando em agonia por algo tão corriqueiro quanto o ar. Mas não é menos importante encontrar os culpados pela negligência criminosa que deixou os hospitais de Manaus sem oxigênio, pois essa é uma barbaridade que não pode se repetir em nenhum outro local do país. O vírus, por si mesmo, já é suficientemente perigoso; Manaus é o retrato do que ocorre quando ele ainda recebe a ajuda de cidadãos irresponsáveis e, especialmente, de autoridades corruptas ou omissas que, com suas ações, testam os limites que separam uma crise sanitária do assassinato em massa.