Em 1.º de dezembro de 2019, a cidade chinesa de Wuhan registrou o primeiro caso de uma síndrome respiratória grave e até então desconhecida. Desde então, o novo coronavírus, causador da Covid-19, se transformou em pandemia global. Um ano e um dia depois deste primeiro registro, no entanto, veio a notícia animadora: a autoridade sanitária britânica, a Agência Reguladora de Medicamentos e Produtos para a Saúde (MHRA, equivalente à Anvisa no Brasil), informou ter aprovado uma vacina para uso no país. A aplicação do imunizante desenvolvido pela Pfizer/BioNTech deve começar na semana que vem, com 800 mil doses direcionadas a profissionais de saúde e idosos acima de 80 anos.
O Reino Unido, portanto, se torna o primeiro país a aprovar uma vacina após todas as fases de teste – Rússia e na China já vinham aplicando de forma experimental vacinas desenvolvidas localmente, mas elas ainda não concluíram os estágios finais de teste em humanos – e a Pfizer/BioNTech é o primeiro consórcio de empresas farmacêuticas a cruzar a linha de chegada em uma corrida com vários outros competidores. Além da evolução tecnológica, do grau de cooperação internacional e do senso de urgência que estão levando ao desenvolvimento de vacinas em tempo recorde, um detalhe burocrático também ajudou a acelerar a aprovação: autoridades sanitárias mundo afora estão analisando as informações de potenciais vacinas quase em tempo real, à medida que elas vão sendo levantadas – anteriormente, os laboratórios forneciam os dados às autoridades apenas depois que todo o processo de testes estivesse concluído.
Sem vacinas suficientes para toda a população global em um primeiro momento, há o grande risco de se repetir o “cada um por si” visto no início da pandemia em relação a insumos médicos e hospitalares
Com a corrida pelo desenvolvimento de mais vacinas ainda em andamento, a aprovação do imunizante da Pfizer/BioNTech dá o tiro de largada para uma segunda corrida, em que cada país buscará garantir à sua população as doses necessárias para criar a imunidade coletiva que permitirá o retorno à normalidade pré-pandemia. O governo britânico adquiriu 40 milhões de doses da vacina da Pfizer/BioNTech, mas, somando todas as outras encomendas feitas a laboratórios cujas vacinas ainda estão em testes, o total chega a 350 milhões de doses, para um país de quase 70 milhões de habitantes. O Canadá foi ainda mais longe: os acordos para a aquisição de sete vacinas diferentes garantirão quase dez doses por pessoa, quando o mais provável é que a imunização ocorra com uma ou duas doses, dependendo da vacina. Um dos laboratórios que recebeu encomendas do governo canadense já garantiu que o país será um dos primeiros da fila.
Sem vacinas suficientes para toda a população global em um primeiro momento, há o grande risco de se repetir o “cada um por si” visto no início da pandemia em relação a insumos médicos e hospitalares. Uma das primeiras vozes a soar o alerta para essa situação foi a do papa Francisco. Em agosto, durante uma audiência, o pontífice afirmou: “Seria triste se nessa vacina contra a Covid-19 fosse dada a prioridade aos mais ricos! Seria triste se esta vacina se tornasse propriedade desta ou daquela nação e não universal para todos”. Mais recentemente, a Organização das Nações Unidas previu que um cenário no qual os países mais pobres demorem a ter acesso à vacina intensificará crises humanitárias causadas pela pandemia e por outros fatores, como conflitos bélicos e as mudanças climáticas, levando ao maior desastre do gênero desde a Segunda Guerra Mundial. E o diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirmou que o efeito deletério da pandemia sobre os salários está apenas no início, com as mulheres e os trabalhadores de baixa remuneração figurando entre os principais prejudicados.
- Igualdade de acesso à vacina contra a Covid-19: uma questão bioética (artigo de Jelson Oliveira, publicado em 14 de setembro de 2020)
- O mundo tem condições de produzir uma vacina boa em pouco tempo (artigo de Benisio Ferreira da Silva Filho, publicado em 3 de novembro de 2020)
- Vacinação obrigatória, “restrições civis” e liberdade individual (editorial de 11 de novembro de 2020)
A América Latina é uma das regiões que podem ser mais afetadas, segundo a ONU. Cerca de um terço dos latino-americanos e caribenhos entrará 2021 em situação de pobreza, o pior número desde 2005. A vacina, sozinha, não consegue reverter esse cenário, mas é condição necessária para uma recuperação mais robusta. Neste sentido, é positivo o fato de o Ministério da Saúde já ter apresentado uma estratégia para a vacinação contra a Covid-19 no Brasil. O plano, infelizmente, contempla pouco menos da metade da população brasileira, limitação imposta pelo número de doses encomendadas pela União até o momento. O ministro Eduardo Pazuello se mostrou frustrado com as recentes conversas com laboratórios na tentativa de ampliar essa oferta. Garantir uma cobertura vacinal mais ampla, que efetivamente livre o país da Covid-19, dependerá de mais boas notícias neste campo, com o sucesso de outras vacinas, e da participação de estados, municípios e iniciativa privada para suprir a demanda.