Em cerimônia prevista para hoje em Brasília, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregará seu relatório final, fruto de dois anos de trabalho que incluíram exaustivas pesquisas e inúmeros depoimentos. Por mais que o objetivo da CNV seja "apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988", é mais que evidente, a julgar pelas declarações dos próprios membros da comissão, que existe um foco mais específico: o de apurar os crimes cometidos pelos agentes do governo militar que vigorou no país entre 1964 e 1985. A prioridade é compreensível, considerando-se que este é justamente o período de nossa história sobre o qual pairam as maiores dúvidas e que gerou cerca de 150 desaparecidos políticos cujo paradeiro é até hoje ignorado.

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Certamente o relatório será usado para ressuscitar as demandas pela revisão da Lei da Anistia, assunto que já tratamos inúmeras vezes neste espaço. Hoje, no entanto, abordamos um outro aspecto do trabalho que se conclui hoje, com a apresentação do documento final da CNV. Pois não estamos completamente certos de que a comissão terá servido para efetivamente restaurar aquilo que está no próprio nome do órgão: a verdade.

A verdade tem de ser completa, e para isso é preciso que as instituições e pessoas envolvidas assumam os papéis que desempenharam durante o período da ditadura. Os militares ainda resistem em admitir as violações de direitos humanos, as torturas, as prisões arbitrárias e os assassinatos cometidos nos porões dos quartéis; os clubes militares, que representam os oficiais da reserva, chegaram a tentar barrar a divulgação do relatório, sendo derrotados na Justiça.

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E tão prejudicial para a história quanto o silêncio sobre essas mortes, torturas e desaparecimentos é a construção de uma mitologia a respeito da atividade dos guerrilheiros, segundo a qual esses grupos estariam lutando pela redemocratização do Brasil. O ex-deputado Fernando Gabeira e o candidato derrotado à Presidência Eduardo Jorge estão entre os raros que admitiram um objetivo bem diferente: a derrubada do regime militar e sua substituição por outra ditadura, a do proletariado. Prova da força dessa mitologia do "terrorismo pela democracia" é a substituição gradual dos nomes de logradouros e obras de infraestrutura que antes homenageavam líderes vinculados ao regime militar e agora evocam membros da guerrilha como Carlos Lamarca e Carlos Marighella – este último, autor de um manual de terrorismo urbano.

Enquanto isso, os verdadeiros democratas – tanto os que julgaram necessário recorrer à luta armada em nome da democracia quanto os que permaneceram usando os poucos marcos institucionais dentro dos quais podiam se movimentar – são ofuscados por aqueles que desejavam o autoritarismo de esquerda. Nomes como Franco Montoro, Márcio Moreira Alves, Ulysses Guimarães, Dante de Oliveira e Mário Covas, para ficar apenas em alguns, nem de longe recebem o mesmo destaque de um Lamarca, de um Marighella (que mesmo antes de 1964 já tinha um histórico antidemocrático) ou de outros que seguem vivos, alguns no governo, outros até pouco tempo atrás na Papuda.

Conhecer a verdade é imprescindível para que o país possa espantar seus fantasmas e seguir adiante. Diversos outros países passaram por processos semelhantes. Mas a reconstituição da verdade precisa ser completa, sem falsificações ou mitologias, e a mera troca de lugar entre mocinhos e vilões do passado e do presente não satisfaz esse requisito.

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