Com a visita do presidente Jair Bolsonaro (PSL) a Israel, que ocorre entre domingo (31) e quarta-feira (3), volta ao debate público a questão da transferência da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. A discussão deste que é um dos temas mais intrincados da política mundial começou em dezembro de 2017, quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que transferiria a embaixada americana para Jerusalém, o que foi operacionalizado em maio de 2018. Ainda durante a campanha das eleições presidenciais brasileiras, Bolsonaro afirmou que seguiria o exemplo de Trump, uma declaração confirmada várias vezes pelo próprio presidente então eleito, por seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL) e por Ernesto Araújo, que assumiria as Relações Exteriores.
O primeiro aspecto delicado da questão diz respeito às relações econômicas – que abrangem comércio, investimentos e cooperação – com os países árabes, parceiros tradicionais do Brasil. Felizmente, desde de janeiro, as declarações sobre o assunto se amainaram. Refletindo preocupações legítimas de outras alas do governo, notadamente da Vice-Presidência e do ministério da Agricultura, Bolsonaro e Araújo começaram a dizer que ainda não tinham “batido o martelo” e que a ideia estava em “banho-maria”. O Itamaraty passou a se preocupar em buscar alternativas que permitissem ao governo cumprir uma promessa de campanha e, ao mesmo tempo, não afrontar os árabes, que compraram mais de US$ 11 bilhões dos brasileiros só em 2018. Se os países muçulmanos não árabes forem somados à conta, a cifra passa dos US$ 20 bilhões.
O Brasil tem um peso simbólico muito importante na discussão e sempre buscou manter-se equidistante das partes.
Esse não é um mercado que se consiga substituir do noite para a dia, principalmente porque os empresários brasileiros que se especializaram na venda de proteína halal, em que a carne é manejada segundo regras da religião islâmica, fizeram investimentos vultosos nessa técnica nas últimas décadas. Fechar essa porta seria queimar esses investimentos, abandonar a curva de aprendizado que toda especialização requer e frustrar expectativas legítimas dos atores econômicos. Além disso, do ponto de vista estritamente comercial, o mercado de Israel não tem potencial para compensar essas perdas.
É claro que uma aproximação com Israel pode ser vantajosa para a economia brasileira para além do comércio. O país está entre os primeiros colocados nos rankings de ciência e tecnologia, é uma potência na área de segurança pública e defesa, e desponta como uma força expressiva na inovação e em ecossistemas digitais e de startups de diversas áreas. Não só o governo brasileiro teria a ganhar com uma relação mais estreita nesses campos, mas o setor produtivo poderia se beneficiar sobremaneira de incrementos tecnológicos e em recursos humanos, fundamentais para a elevação da produtividade. A questão que se coloca, no entanto, é que transferir a embaixada para Jerusalém nunca foi um pré-requisito imposto pelo governo israelense para aprofundar as relações com qualquer parceiro – o que não justificaria uma fustigação dos árabes nesse tema.
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Também é verdade que analistas e observadores não têm clareza sobre se os árabes de fato retaliariam o Brasil. Eles não reagiram concretamente aos Estados Unidos, embora se deva dizer que o Brasil tem um peso econômico bem menor na região. Mas há um segundo aspecto central nessa discussão que não pode ser esquecido: desde que o brasileiro Oswaldo Aranha presidiu a reunião da Organização das Nações Unidas (ONU) que criou o plano de partilha das terras entre Israel e Palestina, o Brasil tem um peso simbólico muito importante na discussão e sempre buscou manter-se equidistante das partes, apostando nas soluções negociadas do impasse com base no multilateralismo e no direito internacional.
A complexidade da questão não nos permite analisá-la por inteiro neste espaço, mas essa postura do Brasil sempre envolveu apoiar a solução de dois Estados e o status internacional de Jerusalém – e, mais recentemente, seguindo o consenso mundial, a tendência de que esse status se resolva no âmbito da negociação de paz definitiva, sempre almejada, mas nunca alcançada, entre israelenses e palestinos. A sinalização e a postura dos Estados Unidos de Donald Trump, porém, vêm na contramão dessa tendência. Trump tem priorizado o unilateralismo e investido em movimentos sem o apoio sequer de aliados tradicionais – basta ver que até agora apenas a Guatemala seguiu a posição americana quanto a Jerusalém. Pior ainda, nada, até o momento, indica que essas ações estejam colocando a região mais perto de um acordo de paz definitivo.
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Nenhum país deve estar para sempre amarrado a decisões passadas, nem a política externa é imune a mudanças que saem das urnas, mas, na arena internacional, é preciso reconhecer que a ação concertada da comunidade das nações é um ideal sempre a ser buscado – e a coerência com as decisões passadas, um requisito de legitimidade. Quanto mais complexo um tema, maior a necessidade de que qualquer mudança seja prudente, refletida e consciente de todas as variáveis que estão em jogo. Que o governo brasileiro tenha tudo isso em mente quando enfim anunciar sua decisão sobre Jerusalém.
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