Enquanto as autoridades policiais brasileiras ainda não recebem as imagens do aeroporto de Roma, prometidas para o fim desta semana, há muitas dúvidas e algumas poucas certezas em relação ao episódio, ocorrido no dia 14, em que um grupo de brasileiros teria hostilizado o ministro Alexandre de Moraes e seu filho, que retornavam ao Brasil após um evento na Universidade de Siena. As dúvidas dizem respeito ao que realmente ocorreu, já que até o momento só há as versões dos envolvidos; as certezas são as de que o caso está sendo usado para alargar indevidamente uma série de conceitos, dando margem a novas medidas persecutórias que não teriam lugar em uma sociedade onde vigoram o devido processo legal e o império da lei.
Até onde se sabe, os brasileiros, ao verem Moraes no aeroporto, teriam chamado o ministro de “bandido”, “comunista” e “comprado”. O magistrado não teria sido vítima de nenhum tipo de agressão física, mas há versões conflitantes envolvendo o filho de Moraes: em uma delas, ele teria tomado as dores do pai e acabou levando um tapa; Roberto Mantovani, no entanto, afirmou que “pode ter esbarrado” nos óculos do rapaz enquanto defendia a esposa, em uma discussão sobre acesso a uma sala VIP – tanto o casal quanto o terceiro suspeito, Alex Zanatta, negaram ter xingado o ministro, o que teria sido feito por outras pessoas presentes no aeroporto.
Tratar o caso do aeroporto como um crime “contra o Estado Democrático de Direito” exige considerar ou que xingamentos têm o superpoder de desestabilizar o poder constituído, ou que Alexandre de Moraes é a democracia encarnada. Nada disso faz sentido
Tenham vindo dos três suspeitos, tenham vindo de outras pessoas, é evidente que os xingamentos em questão, na mais severa das hipóteses, caracterizariam crime de injúria. Deixando de lado a discussão sobre a possibilidade de punição no Brasil, por se tratar de fato ocorrido fora do país (ainda que envolvendo apenas brasileiros) e cuja pena é pequena, é evidente que se trata de um crime bastante simples de apurar: investiga-se o que foi dito, as circunstâncias em que foi dito, e se a afirmação efetivamente constitui injúria. Sendo assim, não há a menor necessidade de medidas como a busca e apreensão realizadas em dois endereços do casal Mantovani, nesta terça-feira, dia 18, por ordem da presidente do STF, ministra Rosa Weber. Nada do que a polícia estivesse buscando ali seria capaz de elucidar o episódio do aeroporto, mesmo que a PF considere estar investigando também supostos crimes de desacato e perseguição – o que de partida já parece muito descabido.
Ainda mais descabido seria tratar o caso como um crime “contra o Estado Democrático de Direito”, mas é o que tem ocorrido – foi o que disseram, por exemplo, o ministro da Justiça, Flavio Dino, e o ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski. No entanto, enquadrar um insulto na categoria de golpismo exige uma de duas hipóteses que podemos tranquilamente definir como delirantes. Na primeira, as palavras não apenas “ferem”, como gostam de dizer os apóstolos do vitimismo, mas também ganham autênticos superpoderes, a ponto de um xingamento ser capaz até mesmo de abolir a ordem constitucional instituída. Mas acreditar que três pessoas chamando um ministro do Supremo de “bandido”, “comprado” ou “comunista” podem derrubar um governo ou fechar a suprema corte pede o mesmo tipo de suspensão de descrença dos filmes de super-heróis, em que um vilão elimina metade da humanidade estalando os dedos. Pode fazer sentido para um ministro que já se comparou aos Vingadores, mas não para qualquer pessoa que tenha os pés no chão.
A segunda hipótese é aquela na qual acontece a Alexandre de Moraes – e, por extensão, a qualquer outro ministro do Supremo – o mesmo que aconteceu com Lula, que antes de ser preso, em 2018, disse “eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia”. No caso de Moraes, ele se veria como a incorporação, a personificação das ideias de democracia e de Estado de Direito. O que quer que se lhe faça é automaticamente transformado em “ataque à democracia”, sem a menor necessidade de qualquer tipo de apuração mais criteriosa. Só assim um xingamento fortuito teria como ser enquadrado na categoria dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, mas, novamente, esse tipo de lógica não faz o menor sentido, especialmente levando em conta que, nas verdadeiras democracias, o direito de criticar as autoridades é defendido com unhas e dentes.
Um episódio que consiste (mais uma vez, até onde se sabe) em xingamentos a um ministro do STF e, possivelmente, alguma leve altercação física envolvendo um familiar deste ministro ganhou dimensões muito maiores que as devidas – mas este tem sido um triste padrão do Brasil recente. A insatisfação contra um magistrado de suprema corte, mesmo quando manifestada de forma injuriosa, não justifica medidas judiciais arbitrárias e desproporcionais. Nem um xingamento é capaz de desestabilizar a República, nem um ministro do STF é o Estado de Direito encarnado. Tratar as coisas pelo que são é um primeiro passo para que o Judiciário recupere o respeito perdido nos últimos anos.