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Carlos Ramalhete

Memento mori

Amanhã seria o fim do mundo. A importância que se dá à suposta predição maia é diretamente proporcional ao esforço que a nossa sociedade faz para esconder o fim de cada um. Para todos nós, a morte é o fim do mundo. Pode ser o fim de um mundo, para quem crê; pode ser o fim de tudo, para o descrente; mas com certeza é o fim da vida tal como a conhecemos.

Na nossa sociedade morre-se às escondidas, em um hospital. Pela primeira vez na história da humanidade, é possível morrer de velho sem jamais ter visto um cadáver. Um dia a pessoa estava ali, no outro dia no hospital, no dia seguinte desapareceu. Esta negação de que a vida tenha um fim é apenas outro aspecto do culto à saúde que nos deu o antitabagismo, as dietas, as academias em que se persegue a ilusão da eterna juventude. É outra face do desprezo aos idosos e à sua experiência.

Assim, a sociedade finge viver um eterno presente; algumas décadas atrás, parecia ser da ordem natural das coisas que houvesse o então chamado "mundo livre" e os países por trás da Cortina de Ferro. Hoje o mesmo acontece com peculiaridades absolutamente transitórias de nosso tempo, da última moda em redes sociais à última tentativa de transformar alguma instituição de direito natural em outra coisa: é o casamento que deixa de dizer respeito à perpetuação da espécie e passa a ser acerca de sexo e dinheiro; é o direito penal que deixa de se preocupar com a segurança da população para garantir os direitos humanos dos criminosos...

Tudo o que é sólido desmancha no ar, mas esta dissolução é percebida como um retrato instantâneo da solidez. Tudo o que é transitório é tratado como se fosse permanente, e tudo o que é permanente é sujeito a reengenharias mil.

Daí a sensação social de insegurança, a percepção de que a sociedade como um todo é uma ilusão. E, da sociedade, passa-se à vida no planeta. Não há tanta diferença entre o ambientalismo radical e a suposta predição maia: ambos são reflexos de uma percepção generalizada de haver algo profundamente instável, profundamente desordenado, na maneira supostamente perene como a nossa sociedade se relaciona com ela mesma e com o mundo ao redor.

O fim que nos virá, contudo, não é o do mundo, mas o nosso. A sociedade perdura, como uma cigarra que sai da casca antiga e ganha mundo com um corpo novo. O homem, contudo, deixa o mundo. E é disto que nos esquecemos. Memento mori, diziam os antigos: lembra-te de que morrerás. Se não amanhã, um dia. Os maias – que já morreram – não têm mais nada a ver com isso.

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