Há quarenta anos, não era lisonjeira a análise feita pelos tributaristas acerca do nosso universo tributário. Nosocômio tributário e clínica fiscal foram algumas designações patológicas acerca do conjunto assistemático de tributos então existente.
A Emenda Constitucional de n.º 18/65, feita à Constituição de 1946, e a edição do Código Tributário Nacional reverteram o estado caótico então vigente, impondo-lhe racionalidade, equilíbrio, harmonização e funcionalidade, criando, portanto, um efetivo e moderno sistema tributário.
Ideais consagrados nas Constituições mediante a formulação de princípios diretores da tributação têm sido, na prática legislativa, permanentemente erodidos como se fossem para inglês ver. Medidas provisórias e leis instituídas com o objetivo fundamental de obtenção de constantes acréscimos de arrecadação têm tornado prescindível a existência de uma administração tributária eficiente na redução da evasão.
Na realidade, os aumentos obtidos na arrecadação federal devem ser majoritariamente creditados às manipulações legislativas realizadas por criação de novas incidências de contribuições e ampliação de bases de cálculo e elevação de alíquotas. O resultado é o de a carga tributária ter chegado ao limite de saturação, tornando-a insuportável para o contribuinte correto, induzindo poderosamente à evasão os que tenham condições materiais para fazê-lo.
Estabeleceu-se uma ambiência selvagem, de espoliação de quem paga adequadamente os impostos e contribuições devidos, e de prosperidade aos que se arriscam a praticar a evasão, sonegação e elisão temerária.
No processo de criação de novas incidências tributárias o veículo tem sido as contribuições. Elas apresentam a conveniência para a União de não serem rigidamente disciplinadas na Constituição atual, como os impostos e taxas, e, regra geral, não serem partilhadas com os estados e municípios. Quase todas apresentam base de incidência típica de imposto, embora deva ser reconhecido que o Supremo Tribunal Federal tenha sido de grande complacência ao definir os seus limites, possibilitando a invasão delas sobre a materialidade de impostos da competência dos estados, Distrito Federal e municípios.
A mais recente inovação foi a incidência da Cofins e da contribuição para o Programa de Integração Social PIS sobre as importações de mercadorias e serviços. Foi saldada como instrumento de proteção à produção nacional, pois elevou a carga tributária aplicável às importações. Constituiu um exagero arrecadatório, pois quem concebeu tais incidências objetivou alcançar produtos finais. Esqueceu-se de que a produção nacional utiliza intensamente insumos estrangeiros, o que passou a afetar os custos da produção nacional, que tiveram sensível elevação, prejudicando a sua competitividade no plano internacional. Em termos figurados, introduziu-se nas importações um gambá arrecadador que tornou insuportável o ambiente tributário, onde ele penetrou. Basicamente, na Confins e no PIS.
A Lei n.º 11.196, de 21 de novembro deste ano, está retirando o gambá de alguns afortunados ambientes. Para chegar a isso, foram praticadas algumas mágicas no processo legislativo.
A Medida Provisória n.º 252, que estabelecia a profilaxia desse gambá arrecadador, denominada pela propaganda oficial de "medida provisória do bem", teve esgotada a sua eficácia, pois não foi convertida em lei no prazo estabelecido pelo art. 62, § 3.º, da Constituição. Perdeu, portanto, tal medida provisória vigência e eficácia.
Todavia, a prática do bem, quando dirigida a setores acostumados à benemerência tributária, adquire potência irreversível, insuscetível de ser travada por obstáculos de prosaica tramitação legislativa, principalmente se há uma congregação de esforços governamentais e parlamentares, impulsionados pelos agraciados e se agrega a isso alguns benefícios para a plebe, como a venda de computadores, isenção a taxistas e a redução do lucro imobiliário na venda de imóveis e prazos mais esticados para pagamento de tributos.
O resultado foi surpreendente. De uma medida provisória n.º 255/05, diga-se franciscana, referente à prorrogação de prazo do imposto de renda retido na fonte de pessoas físicas participantes de planos de benefícios, com exatos três artigos, aí computada a cláusula final de vigência, ressurgiu, em magia de ressuscitação, o conteúdo da medida provisória do bem, que tinha ido para o beleléu.
Conseguiu-se o milagre da reprodução legislativa. Transformar medida provisória de ínfimos três artigos na Lei n.º 11.196, sancionada em 21 de novembro deste ano, contendo 133 artigos, mágica da benemerência para os poderosos. Medida Provisória não é um número de identificação, mas possui um determinado conteúdo normativo.
É inquestionavelmente um milagre legislativo de reprodução de dispositivos legais. Demonstra a força do bem quando seus destinatários são poderosos e se perfuma a lei com penduricalhos atraentes, em coquetel normativo, engolindo-se a limitação do artigo 62, § 3, da Constituição. E mostra a opção decisiva do governo Lulábia da Silva pelo capital, exportadores e mercado, os seus "peixes".
Osíris de Azevedo Lopes Filho é advogado, professor de Direito na Universidade de Brasília (UnB) e Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-secretário da Receita Federal.
osirisfilho@azevedolopes.adv.br
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