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editorial

Não é preciso esperar 2014

Euforia de voluntários no site da Fifa chama atenção para os avanços, mas também fragilidades da ação solidária na grande pátria carente chamada Brasil

Pesa sobre o brasileiro a sina de ser pouco filantrópico. Diferentemente dos Estados Unidos, onde, por exemplo, orquestras inteiras são mantidas por força da contribuição desinteressada do público, no Brasil é raro um programa de filantropia que dure muitas estações. Talvez ocorra com os carnês da paróquia, e não mais. Quando o assunto é voluntariado, contudo, o cenário muda, chegando às raias do fenômeno.

Foi o caso na semana passada – em 24 horas foram feitas 37 mil inscrições no site da Fifa, aberto para interessados em atuar na Copa das Confederações e na Copa do Mundo. A página teria chegado a pifar de cansaço. Os candidatos vêm de 69 países, mas quase metade é formada por... brasileiros. Há nessa situação, evidentemente, uma causa irresistível, o que não sucede em se tratando de setores menos midiáticos, como a própria educação, tão carente de torcedores entusiasmados. O ocorrido no site merece um dedo de prosa – ainda mais hoje, Dia Nacional do Voluntariado.

Pode-se dizer, sem medo de errar, que brasileiro é voluntário pela própria natureza, bate palmas na casa do vizinho, oferece-se para ajudar, crente no "uma mão lava a outra". Trata-se de comportamento adquirido, para suprir as falhas de um Estado negligente. Mas, embora culturalmente propensa, a população se ressente da falta de profissionalismo nos setores que pedem mão de obra gratuita, preferindo fórmulas caseiras de colaboração.

Há mesmo quem se ocupe de investigar os labirintos que fizeram a sociedade brasileira mais ressabiada que participativa. Pesquisadores como Walter de Tarso e Antônio Bresolin, ligados à USP, estudam esse vaivém: é uma história mais trágica que bela. Das estruturas de caridade crist㠖 fortes já nos templos coloniais – passou-se à estatização do trabalho voluntário, a partir dos anos Vargas. A mão pesada do governo inibiu os que queriam se alistar, pois não sabiam bem a que senhor estariam servindo.

Essa má fase só passou na década de 1970, quando o Programa Nacional de Voluntariado, da LBV, ganhou alguma credibilidade – desvirtuada nos anos Collor. Tristes trópicos. A revanche veio com a primeira-dama Ruth Cardoso, que à frente do Comunidade Solidária serviu, em bons pratos, a palavra voluntariado na mesa dos brasileiros. Com dona Ruth, a ação ganhou uma aura mais profissional, atraindo gente recém-formada, em busca de experiência, tal como ocorre em diversas partes do mundo. Bingo: em dez anos o número de voluntários cresceu 70% no país.

Na década seguinte, os índices voltaram a saltar, impulsionados pelo Ano Internacional do Voluntariado, lançado pela ONU em 2001. Hoje, estima-se que 25% dos brasileiros tenham alguma forma de participação social espontânea. São algo como 40 milhões de pessoas a postos. É número espantoso, mas não se deve lê-los no balanço da rede, vendo a lua no céu. Não é raro encontrar excelentes programas cujos gestores preferem encerar o chão de joelhos a ter de contar com a instabilidade dos voluntários, que aparecem "quando dá". Faltam campanhas para lembrar que o voluntariado não vinga debaixo das regras da informalidade.

A iniciativa privada tem avançado na questão mais que as igrejas e ONGs. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 59% das empresas brasileiras promovem algum tipo de atividade voluntária, azeitada em compromisso e alguma sorte de resultados. Há em jogo uma questão técnica – o voluntário precisa enxergar com clareza para que serve sua ação. Do contrário, vai preferir seus afazeres. A questão não se esgota por aí.

O voluntário tende a se tornar um agente humanitário, sujeito que torna possível a convivência das diferenças. É a nova ordem: a vida tribalizada, regida pelas relações superficiais, está sendo arrastada pelo "efeito silo", como diz o sociólogo norte-americano Richard Sennett. A troca promovida pelas ações filantrópicas se tornou garantia de que vamos olhar o quintal do outro, freando nossa atração irresistível de viver entre os iguais. Quem se voluntaria não apenas ajuda, mas torna possível que o outro exista. É um bom programa de vida – nem é preciso esperar 2014.

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