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A polêmica questão da transposição das águas do Rio São Francisco trouxe de volta o problema do Nordeste às manchetes da mídia, o que, normalmente, só costuma ocorrer por ocasião das secas. Quem escreve nasceu no Norte do Brasil e guarda como uma das mais nítidas impressões de sua meninice os tristes quadros de sofrimento dos retirantes que, lá pelos idos da década de 30, viu amontoados nos armazéns do porto de Belém, aguardando transporte para o interior da Amazônia. Vinham tangidos pela seca – não me lembro de que ano – mas, com certeza, não eram mais daqueles em busca dos sonhos despertados pelo "ouro negro" da borracha; nem seriam mais daqueles que assinalaram cada dormente da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré com a cruz de uma rasa e esquecida sepultura e não seriam dos milhares de soldados anônimos da "batalha da borracha" que tirariam do meio da selva a valiosa seringa que a ocupação japonesa das plantações asiáticas negaria ao esforço de guerra de ingleses e americanos. Mas eram, com certeza, parte da gente que ingenuamente acreditava que se o grande açude de Orós já estivesse pronto, as coisas poderiam ser bem diferentes.

E lá se vão cerca de 70 anos, de secas periódicas, de sofrimentos, de promessas, de esperanças e de desencantos. A população aumentou apesar de o Nordeste continuar a ver muitos dos seus sertanejos cruzarem esses brasis, em todas as direções, na incessante busca de dias melhores, em novas epopéias anônimas, como a que, sob o comando do gaúcho Plácido de Castro e com a clarividência diplomática de Rio Branco, nos deu o Acre; ou como a dos candangos que construíram Brasília; ou como a dos que fizeram de São Paulo a maior capital nordestina do Brasil. A água continua a mesma, pouca e irregular. Os açudes se multiplicaram e até o de Orós foi terminado. Planos se fizeram, criaram a Sudene, inventaram a Transamazônica para mais facilmente – pensaram alguns – de novo levar nordestinos para as agruras do "inferno verde"; retalharam o Nordeste de estradas, algumas para facilitar o combate ao cangaço, mas muitas delas para dar trabalho aos retirantes da seca. De tempos em tempos, com maior ou menor clamor, os quadros tristes de gente deslocada e faminta, sem água e sem emprego, voltam a freqüentar as telas das televisões do Brasil, no sensacionalismo inócuo e barato que sempre dura menos do que os primeiros dias de seca. Quem visita as capitais dos estados nordestinos surpreende-se com o desenvolvimento e os sinais de prosperidade que em quase todas elas se percebe, onde certas áreas nada ficam a dever às mais ricas cidades do Centro-Sul, num chocante contraste com amplas áreas miseráveis, visíveis nas periferias dessas mesmas capitais ou disseminadas pelo interior do Nordeste. E essa constatação leva à triste conclusão de que, além das grandes e perversas disparidades regionais, tomam corpo agudas disparidades locais e intra-regionais, num visível processo da apropriação progressiva e díspar dos recursos disponíveis, pelos centros de maior influência e poder político, em detrimento das áreas mais despojadas. Nesse contexto, fica patente que o problema da seca não é, como se pensou por muito tempo e muitos ainda pensam, apenas um problema de falta d'água, cuja disponibilidade não acompanhou o aumento do contingente humano. Trata-se de um problema mais complexo e de mais difícil solução. A seca, ou a simples expectativa de sua eclosão, gera uma pronta desorganização na frágil atividade econômica que se traduz por generalizado desemprego. Essa fragilidade econômica, por sua vez, decorre basicamente da inadequação das atividades produtivas às características fisiográficas, humanas e sociais, locais e regionais. O insucesso da industrialização "à outrance", tentada pelos planejamentos iniciais da Sudene, é um exemplo marcante dessa inadequação. Mas, sobre isso e muito mais do que isso, está, a nosso ver, o problema fundamental que responde pelo atraso relativo da região nordestina, em relação a outras áreas mais desenvolvidas de nosso país: a estrutura oligarquia e fechada de poder que lá existe, herança histórica de sua formação e de seu desenvolvimento sociocultural. O patriarcalismo, o coronelismo e o nepotismo das classes políticas e econômicas dominantes, agindo sobre uma base popular permeada por hábitos e crenças de fatalismo, misticismo, estoicismo e conformismo, desenham o quadro sobre o qual se projetam as dificuldades para uma rápida mudança nas condições há longo tempo existentes no Nordeste. Mas. qualquer mudança duradoura e eficaz que se pretenda para tais condições de relativo pauperismo regional, terá que partir de uma corajosa e necessária "mea culpa" por parte das elites nordestinas, que precisam abandonar, em relação às regiões mais ricas e desenvolvidas do Brasil, a atitude escapista que distorce muitas das apreciações que se fazem quanto à influência de fatores externos nos problemas brasileiros. Esse exame de consciência mostrará que os recursos alocados ao Nordeste, ao longo do tempo, se mais bem aplicados, poderiam ter contribuído mais efetivamente para a melhoria das condições de vida das populações nordestinas em que a simples transposição das águas do "velho Chico" pouco irá influir.

Raymundo Negrão Torres é acadêmico e membro do IHGPR e do CLP. Autor do livro "Nos caminhos da História".

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