A força de uma democracia não se mede apenas pela solidez de suas instituições. Uma nação pode apresentar todos os elementos tradicionalmente apontados como pilares da democracia – eleições periódicas, independência entre poderes, liberdades individuais cristalizadas na legislação... –, mas a democracia jamais poderá se considerar totalmente segura se não houver um “caldo de cultura democrática” ou, nas palavras do jusfilósofo Ernst-Wolfgang Böckenförde, “amplos cimentos de cultura política”. É ele quem faz o alerta: “Se em uma democracia faltam pessoas ou grupos com o valor suficiente para estar à altura do desafio da ação representativa e das correspondentes consultas ao povo; se não as há no parlamento, no governo e nos partidos políticos, então a democracia degenera rapidamente em formas de autosserviço político, ou – na hipótese de decisões difíceis – entra em uma situação agônica, e não haverá modo de deter ou encaminhar isto institucionalmente”.
A afirmação do filósofo deriva da constatação de que as instituições não são nada sem as pessoas – e elas precisam estar convencidas dos autênticos valores que constroem uma sociedade sadia. Com cidadãos convictos da importância de colocar o bem comum acima das conveniências individuais é possível construir o que o político e diplomata francês Alain Peyrefitte chamou de “sociedade de confiança”, título de um de seus livros mais célebres. No prólogo desta obra, Peyrefitte defendeu a convicção de que “o elo social mais forte e mais fecundo é aquele que tem por base a confiança recíproca – entre um homem e uma mulher, entre os pais e seus filhos, entre o chefe e os homens que ele conduz, entre cidadãos de uma mesma pátria, entre o doente e seu médico, entre os alunos e o professor, entre um prestamista e um prestatário, entre o indivíduo empreendedor e seus comanditários – enquanto que, inversamente, a desconfiança esteriliza”. A fidelidade e a lealdade são, assim, elementos básicos na busca do bem comum. Uma sociedade em que não se pode confiar nem mesmo naqueles que nos são mais próximos – e os regimes comunistas foram pródigos na criação de uma cultura de delação em que uma pessoa podia ser denunciada até pelos familiares – não tem como prosperar.
A fidelidade e a lealdade são elementos básicos na busca do bem comum
E, se não é possível avançar na democracia e no desenvolvimento econômico sem confiança, também não é possível fazê-lo adotando posturas individualistas. Quando se avalia uma ação como certa ou errada tendo como único critério apenas o benefício próprio, quando se coloca a satisfação individual acima do bem comum, abre-se o caminho para a erosão dos valores democráticos. A mentalidade individualista está por trás da tolerância com inúmeros comportamentos que são, no fundo, pequenos atos de corrupção, como dar ou receber propinas, ou recorrer a ligações clandestinas de luz, água ou televisão por assinatura, os famosos “gatos”. O individualista não consegue reconhecer o elo que existe entre esses pequenos atos e os grandes escândalos de corrupção (que podem ser diferentes em gravidade, mas são fruto da mesma mentalidade) e demonstra, com suas atitudes, um profundo desinteresse pelo outro, por seu bem-estar, pelo próprio senso de justiça. A consagração do “cada um por si” e o desprezo pelo bem comum destroem a boa convivência e eliminam o incentivo para que os cidadãos se juntem em torno de um ideal – ironicamente, a combinação perfeita para regimes totalitários, que proliferam mais facilmente em ambientes nos quais não existe nenhuma instância intermediária entre o indivíduo e o Estado.
Confiança, fidelidade, honestidade, interesse pelo bem comum. Não se trata de “pregação moralista”: é reconhecer que as convicções culturais e morais fortes, quando corretamente assentadas na certeza da incomensurável grandeza do valor do homem, não são inimigas da democracia – são a sua condição. O respeito pela liberdade dos outros, em casos extremos, ao ponto de aceitar inclusive as consequências que poderiam ser negativas para os próprios interesses, só é possível para quem tenha fortemente ancorada na sua vivência essa convicção de que os fins não justificam os meios. É com pessoas assim que se constroem democracias fortes e duradouras.