Realização, felicidade. Quem não quer? Mas como chegar lá sem saber exatamente no que consistem a realização e a felicidade? Diversos sistemas filosóficos se ocuparam deste tema e ofereceram as mais diversas respostas, muitas vezes opostas entre si. Para uns, a felicidade estaria na fruição ilimitada dos prazeres; para outros, na negação completa destes mesmos prazeres. Para uns, a felicidade de uma pessoa é indissociável da felicidade dos demais; para outros, a felicidade individual pode justificar até mesmo que se passe o outro para trás. Em comum entre todas essas noções está a constatação de que a felicidade e a realização passam pelo modo como nos comportamos.
Atualmente, fala-se em ética quase tanto quanto em felicidade ou realização. E a ética é frequentemente associada a um conjunto de normas, uma lista de “certos” e “errados” que balizam nosso comportamento no relacionamento conosco mesmos, com nossa família, nossos círculos de amigos e de trabalho, e no espaço público. Ser uma pessoa “ética” significaria se comportar de acordo com essas normas. Não é exatamente uma maneira errada de enxergar a questão, mas é uma maneira insuficiente.
Deveríamos nos contentar em “passar raspando” pela vida?
Uma ética entendida assim, em termos normativos, tende a se tornar uma ética negativa, uma ética de limites, em que a grande preocupação é traçar (e testar) a linha do “não pode”, o limite que separa o certo do errado, com a convicção implícita de que simplesmente estar do lado “bom” desse limite será suficiente. Para fazer uma analogia com a vida escolar, é claro que ser aprovado com a média mínima exigida pode ser aceitável quando a disciplina é especialmente difícil. Mas deveríamos transformar o “passar raspando” em um ideal, na chave da realização de um estudante? Deveríamos nos contentar em “passar raspando” pela vida?
E a consequência de pensar na ética como a delimitação de linhas separando o certo e o errado é acabar olhando as situações no esquema “preto ou branco”: matar uma pessoa num acidente de trânsito se torna tão grave quanto ordenar um genocídio; uma “mentirinha social”, como aquele elogio nada sincero, é tão condenável quanto uma traição. A vida não é assim: dentro das ações condenáveis, há aquelas mais ou menos graves, e o mesmo vale para os atos louváveis.
Uma ética normativa tende também a ser vista como um saber de especialistas, de experts, que sabem lidar com um complexo de normas, interpretá-las e aplicá-las às situações concretas. Ora, a experiência universal nos mostra que pessoas muito simples, sem qualquer formação especial, são com frequência muito mais retas que outras que usam sua formação para distorcer e justificar o injustificável. Por fim, para cada um de nós, uma moral entendida assim, em termos normativos, acaba dando à ética a condição de algo útil, necessário, mas “que me limita”. Ou seja, como uma exigência externa, requerida pela vida em sociedade, mas não tão grata, nem tão iluminadora da minha existência.
Mas haveria alguma alternativa a essa visão, limitada e pouco atraente, que é a mais difundida e que chamamos de normativa?
O homem cabal é, sobretudo, o homem virtuoso, independentemente de seus dotes intelectuais ou formação cultural
Sim, mas é preciso um bom recuo no tempo. É entre os antigos gregos que se encontra uma intuição acerca da moral que nos parece fascinante. Vários de seus mais ilustres pensadores viam essa questão – e influenciaram amplamente seus contemporâneos – de um modo bastante diverso do que apresentamos acima. Quando, entre eles – e entre os antigos em geral –, se refletia acerca do que depois se passou a chamar de ética, não se pensava em um conjunto de regras, em um emaranhado de normas que importasse conhecer.
Em que se pensava? Em excelência, na busca do melhor e mais perfeito. Pensava-se na ciência da indagação sobre o que o homem está chamado a ser, sobre o que é a realização integral e plena do homem. A ética não era questão de cumprir normas, de se perguntar “posso ou não posso?”. Entendia-se a ética como a resposta à pergunta “o que devo ser?” E a resposta, simples, mas profunda, era: o indivíduo é chamado a ser o melhor que ele puder ser; a não se contentar com menos do que com a excelência.
De que excelência se tratava? A que, especificamente, a palavra arete (excelência moral) se referia? A todas as que podem ser alcançadas pelo homem? No estudo, no trabalho, em um hobby, enfim, em qualquer atividade humana? Não precisamente. Há muitas “excelências”: no esporte, na arte, nos estudos, na ciência. Mas o desempenho excepcional em certos campos não está ao alcance de todos: poucos serão, um dia, campeões olímpicos ou prêmios Nobel. Mais do que isso, ainda: o fato de se alcançar tal nível de performance nesses campos parciais, setorizados, não torna uma pessoa necessariamente melhor como pessoa. Todos temos experiência e notícia de como muitos gênios são canalhas.
Para toda a experiência do ocidente e boa parte do oriente, as virtudes foram vistas como o fim da educação do homem
A ética, portanto, não trata dessas “excelências”, mas de um tipo muito específico de excelência que, sim, está à mão de todo homem ou mulher, e que, sim, os torna melhores como pessoas. Quem no-la descreve é um autor estoico do século 3.º, o imperador romano Marco Aurélio: “muitas coisas dependem por inteiro de ti: a sinceridade, a dignidade, a resistência à dor, (...) a aceitação do destino, (...) a benevolência, a liberalidade, a simplicidade, a seriedade, a magnanimidade. Observa quantas coisas podes já conseguir sem que caiba alegar pretextos de incapacidade natural ou inaptidão, e por desgraça permaneces voluntariamente por baixo das tuas possibilidades. Por acaso te vês obrigado a murmurar, a ser avaro, a adular, a culpar o teu corpo, a dar-lhe satisfações, a ser frívolo e a submeter a tua alma a tanta agitação, porque estás defeituosamente constituído? Não, pelos deuses! Faz tempo que podias haver-te afastado desses defeitos”.
Marco Aurélio está se referindo às virtudes, e a famosa obra de Aristóteles Ética a Nicômaco é exatamente isso: um tratado sobre as diferentes virtudes, qualidades que se adquirem, que se forjam e que, em todas as épocas, foram admiradas (ainda que por vezes se desse mais atenção a umas que a outras). A elas se refere à ética e, para toda a experiência do ocidente e boa parte do oriente, as virtudes foram vistas como o fim da educação do homem.
E isso nos traz de volta ao tema da realização e da felicidade, que, para Aristóteles, consiste em ser aquilo para o qual se foi chamado – o famoso “torna-te aquilo que és” do poeta Píndaro. Isto é, justamente a excelência na virtude. O homem cabal é, sobretudo, o homem virtuoso, mesmo quando seus dotes intelectuais ou sua formação cultural não sejam os melhores ou mais completos. E, se as virtudes são inúmeras, ainda mais variados são os caminhos para a excelência – tantos quantos há seres humanos, poderíamos dizer. Cada pessoa, com seus talentos e circunstâncias, tem sua maneira particular de atingir este ideal. O que une todos esses caminhos é a certeza de que na vivência das virtudes em alto nível (a eupraxia, ou o agir bem) está o caminho para a felicidade. Recuperar essa ética da excelência é um passo importantíssimo se queremos construir uma sociedade preocupada com o bem comum.
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