| Foto: Felipe Lima

No romance distópico 1984, de George Orwell, o Estado totalitário que domina a Oceania não se contenta em coibir o que seus cidadãos fazem ou dizem: a fiscalização chega até os pensamentos das pessoas. A “crimideia”, no jargão criado pela Novilíngua, é o ato de alimentar ideias contrárias à ideologia do “socialismo inglês”, e é coibida pela Polícia do Pensamento. O horror que a maioria de nós sente ao imaginar que tal repressão possa ser aplicada no mundo real nos mostra o quão vital é a liberdade de expressão para a sobrevivência da democracia.

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Na expressão de Baruch Spinoza, “se cada homem, por um inalienável direito natural, é mestre de seus próprios pensamentos, consequentemente os homens, que pensam de formas diversas e contraditórias, não podem, sem resultados catastróficos, ser coagidos a falar apenas de acordo com o que é ditado pelo poder supremo”. O filósofo holandês ainda afirmava que o governo não devia “transformar os homens, de seres racionais a animais ou marionetes, mas capacitá-los a desenvolver suas mentes e corpos em segurança, e de empregar sua razão sem algemas”. Ora, apenas em um ambiente no qual vigora a liberdade de expressão o homem pode desenvolver o uso da razão, especialmente por meio do debate honesto de ideias sobre as mais diversas questões.

Sem informação não é possível, por exemplo, o exercício consciente do voto ou a cobrança do poder público

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A ligação entre democracia e liberdade de expressão pode ser muito bem demonstrada na participação política. Sem informação não é possível, por exemplo, o exercício consciente do voto ou a cobrança do poder público. Os cidadãos não teriam como registrar todas as ações de governo e suas consequências positivas ou negativas. Sem liberdade de expressão, a população tampouco poderia tornar conhecidas suas demandas, os temas e plataformas que interessam às pessoas, os problemas que precisam de solução urgente. Grupos de pressão ou minorias não teriam como apresentar suas causas e reivindicações. Nem mesmo os políticos poderiam se expressar livremente e dialogar entre si e com seus eleitores. O debate sobre os rumos de um país estaria interditado sem a possibilidade de questionamento das decisões do poder incumbente.

No entanto, limitar o poder da liberdade de expressão apenas às questões políticas seria empobrecer o seu valor. Ela abrange diversas outras dimensões da vida humana, entre as quais a arte merece um destaque especial. Não são poucas as ideologias que só reconhecem uma arte “engajada”, que sirva como veículo de transformação social. Para quem defende essa ideia, uma canção de protesto ou um documentário de denúncia seriam muito mais importantes que uma canção de amor ou uma comédia despretensiosa cujo objetivo é simplesmente fazer rir. Mas pensar dessa forma é instituir uma funcionalização da arte ou da liberdade de expressão, como se elas não tivessem valor em si mesmas, mas só quando servissem a um determinado propósito ou ideologia; é esquecer a dimensão ligada à autonomia espiritual e intelectual dos indivíduos. Os caminhos para a realização das pessoas são inúmeros, e não necessariamente passam pela participação política ou cívica. Como negar valor a um romance de Jane Austen, a um soneto de Camões ou Shakespeare, ou ao Hino ao Amor cantado por Edith Piaf? Falar de sentimentos não deixa de ser falar de algo que nos faz humanos; a transformação interior é tão importante quanto a transformação social.

Além daquele erro que só vê valor nas manifestações “engajadas”, há outro erro comum quando se trata da liberdade de expressão: é a sua absolutização, uma tendência crescente nas discussões sobre esse direito. Mas é fácil perceber que há, sim, limites à liberdade de expressão. O respeito à dignidade humana, por exemplo, é um deles. Não podemos tolerar o racismo, as ofensas à honra ou qualquer agressão que diminua um ser humano em dignidade na comparação com seus iguais. O mesmo critério se aplica aos casos de apologia ao crime, pelo menos aos casos de apologia a crimes especialmente graves, em que há um desrespeito frontal ao que a sociedade, por meio de seus representantes, definiu como as condutas mais deletérias e reprováveis.

É preocupante a tendência crescente de propor leis que criminalizam a crítica a determinados comportamentos

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O reconhecimento de que há limites à liberdade de expressão, no entanto, não pode nos levar a exageros restritivos. Se, como dissemos, o racismo, as ofensas à honra ou à privacidade, a extorsão, para dar alguns exemplos, não podem ser aceitos, o simples questionamento da legislação corrente e a defesa de mudanças no ordenamento jurídico são direitos que precisam ser preservados. Pense-se, por exemplo, nas conhecidas passeatas em favor da legalização da maconha, perfeitamente legítimas (a ilegitimidade só advém se houver explícita apologia ou instigação ao uso da droga).

Outra situação preocupante é a tendência crescente em alguns círculos de propor leis que criminalizam a crítica a determinados comportamentos. É um movimento que floresce entre pessoas que se dedicam com muito empenho às causas em que acreditam – o que é louvável –, mas, talvez por isso, elas se esqueçam da heroica e valiosa luta de tantos pela defesa da liberdade de expressão. Pense-se, por exemplo, em algumas das dimensões do que se vem chamando de “homofobia”. Embora seja razoável e necessário tipificar mais exatamente a injúria em razão das opções sexuais, bem como os casos de preconceito ou discriminação, não se pode de maneira nenhuma criminalizar a opinião contrária ao comportamento homossexual. A história do ocidente e muito dos avanços que nos últimos séculos a sociedade experimentou se deveram, em grande parte, à tolerância às opiniões ácidas, desagradáveis ou incômodas. Aliás, faz parte da tradição da defesa da liberdade de expressão o fato de jamais se ter admitido a criminalização da opinião meramente crítica a comportamentos, sejam estes louváveis ou reprováveis. Pense-se, por exemplo, em comportamentos amplamente aceitos pela sociedade e considerados valiosos: o casar-se, o trabalhar, o dedicar-se a causas sociais. Imagine-se, agora, que se quisesse criminalizar a crítica, por mais absurda que fosse, a esses comportamentos. Criminalizar, por exemplo, quem dissesse que se casar é o mesmo que se jogar, sem qualquer equipamento, de um prédio de 15 andares; ou que se casar é passar um atestado de demência. Seria completamente inaceitável, por mais que grande parte da população achasse, com razão, que essas comparações ou afirmações são extremamente ofensivas.

Preservar os espaços para discussão é o melhor caminho para fomentar a tolerância, outro valor tão caro aos defensores da verdadeira democracia.