O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma que “o reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana é o fundamento da liberdade, justiça e paz no mundo”. Uma afirmação sem dúvida bela e verdadeira, mas um tanto abstrata. Reconhecer e defender a dignidade intrínseca da pessoa humana tem também uma série de consequências muito práticas.
A primeira delas é a de ter uma atitude positiva diante do surgimento de cada nova vida humana. Cada novo homem representa um novo tesouro para a sociedade, com todos os seus potenciais e mistérios. Daí que uma atitude a priori antinatalista deva ser sempre ser vista com reserva. Mas não é verdade que, de uma forma mais sutil, a sociedade está se impregnando de uma mentalidade assim? A ideia da abertura à vida não é vista com cada vez mais hesitação generalizada? Que um casal, analisando suas circunstâncias particulares, veja a necessidade de limitar o tamanho de sua família, é perfeitamente compreensível. Que haja preocupações em relação aos perigos que rondam o desenvolvimento de uma criança ou adolescente, não há surpresa. Mas, quando a noção do “filho como um ônus”, ou pelo menos como um bem, mas muito trabalhoso, permeia toda uma sociedade ou pelo menos um estrato dela e se torna o senso comum, de modo que a prática e o discurso predominantes sejam o da limitação da família a uma ou no máximo duas crianças, há algo profundamente equivocado. Se valorizamos cada indivíduo pelo que é, o surgimento de novos seres humanos não deveria ser saudado com uma alegria que supera o eventual trabalho que seu cuidado exige? Não se trata, aqui, de negar a realidade: filhos exigem dedicação e sacrifício. Mas não é assim com tantos outros projetos, como concluir um curso ou gerir uma empresa? E não é verdade que, por mais trabalho que deem, os empresários tendem a desejar expandir os seus empreendimentos, ou abrir novos? Ora, um novo ser humano vale muito mais que qualquer diploma ou balanço no azul.
Um novo ser humano vale muito mais que qualquer diploma ou balanço no azul
E, se existe uma exacerbação do antinatalismo que se refere à espécie humana como um todo, há outra manifestação perversa dessa mentalidade que dirige seus esforços contra certos indivíduos específicos: aqueles vistos por muitos como “inferiores” ou “imperfeitos”, seja por circunstâncias da natureza – como uma deficiência física ou mental –, seja por razões ideológicas, como fizeram tantos regimes que negaram a dignidade de determinados grupos étnicos, sociais ou religiosos, recorrendo até a esterilizações forçadas. Se estas barbaridades parecem coisa do passado, é fato que a eugenia mantém seu apelo quando se pretende negar o direito de viver àqueles que são diagnosticados, ainda no útero, com alguma condição que lhes impedirá de serem “perfeitos” segundo determinados padrões. Contra esse tipo de pensamento, é preciso afirmar, com o filósofo espanhol Tomás Melendo, que “diante de uns olhos que saibam apreciá-los, os infradotados manifestam, com maior claridade que os sujeitos normais, os autênticos títulos da insondável dignidade do ser humano”.
Outra consequência lógica do reconhecimento da dignidade intrínseca da pessoa humana e dos direitos e liberdades que daí decorrem é nossa responsabilidade para que o ambiente, em todas as suas facetas – econômica, social, cultural, moral – seja congruente com essa dignidade. É preciso combater incessantemente todas as situações que não são condizentes com o status especial do ser humano, e a miséria, em todas as dimensões, é talvez a pior delas. Por mais que a degradação material seja aquela que nos salta aos olhos quando percebemos uma situação de miséria, seus efeitos são ainda mais perversos, pois o miserável se vê privado das condições mínimas para sua realização como ser humano: a miséria lhe nega justamente as ferramentas para ser dono de seu destino, reduzindo-lhe a autonomia.
A miséria moral é tão ou mais grave quanto a miséria material
A miséria material, no entanto, não é a única ameaça à dignidade humana. A miséria moral, observada quando uma comunidade já perdeu completamente a noção do certo e do errado, é tão ou mais grave quanto a miséria material. Ela cria as condições para que as pessoas tomem livremente atitudes que não condizem com sua dignidade ontológica – pois nem todo ato humano livre pode ser reconhecido como meritório ou justificável simplesmente por não prejudicar os direitos e liberdades alheios. O uso de drogas, por exemplo, pode ser incluído no rol das atividades degradantes, por seus efeitos amplamente conhecidos na saúde física e mental de seus usuários, e pelo dano que causa à própria liberdade humana ao retirar (ainda que temporariamente) a autonomia daqueles que a consomem. A pornografia e a prostituição são outros exemplos desse tipo de comportamento porque minam, lenta e inconscientemente, a autoestima e a noção do valor do próprio corpo, valor este que jamais pode ser auferido em termos monetários. Uma visão positiva do ser humano nos leva a procurar a superação de todas essas situações e a exaltar aquilo que temos de melhor: a capacidade de refletir sobre nós mesmos, de buscar o bem (o nosso, o daqueles que nos são próximos, o da sociedade como um todo), de amar.
E essa busca pelo bem só será possível em uma sociedade que respeite a autonomia e a liberdade, que ofereça as ferramentas para que todos tenham as condições de perseguir seus objetivos e sua realização. Isso inclui não apenas garantias fundamentais e princípios democráticos que precisam estar cristalizados no ordenamento jurídico de um país, mas uma organização da sociedade que faça da pessoa a grande protagonista de sua história.