Sólidos “cimentos” de cultura participativa, por um lado, e o Estado de Direito, com ampla proteção a liberdades e garantias individuais e sociais, por outro, são os melhores alicerces de uma democracia. Quando estão presentes em um determinado país, a própria interpretação das normas constitucionais tende a ser feita sob sua luz, gerando um complexo de princípios e de decisões que reforçam a própria lógica democrática.
A doutrina e a jurisprudência alemãs, sobretudo do pós-guerra, e a atuação da Suprema Corte dos Estados Unidos acabaram identificando e formulando com precisão, desde perspectivas formais levemente diferentes, embora substancialmente convergentes, um princípio que, bem compreendido, está implícito em qualquer ordenamento verdadeiramente democrático. Referimo-nos ao princípio da proporcionalidade (segundo a terminologia germânica) ou da razoabilidade (segundo a tendência americana).
Quaisquer limitações às liberdades dos cidadãos têm de ser exceções e devem ser rigorosamente justificadas
Este princípio – utilizaremos aqui a formulação alemã, mais comumente adotada pela doutrina e jurisprudência brasileiras – nada mais é que a aplicação do bom senso, de critérios racionais na hora de avaliar uma ação do poder público, evitando excessos e legalismos indevidos. Parte, no fundo, da visão, da compreensão de que quaisquer limitações às liberdades dos cidadãos têm de ser exceções e devem ser rigorosamente justificadas e, por isso, tem uma especial importância na proteção do ethos democrático.
É com base neste princípio que se pode avaliar com mais precisão a compatibilidade com a Constituição quer de ações do Executivo, quer da elaboração normativa do Legislativo: é correto, por exemplo, em regiões com altos índices de homicídios, ordenar o fechamento de bares a partir de determinado horário? Seria constitucional a lei – que acabou não “pegando” – que estabelecia a presunção de que todos os brasileiros eram, salvo declaração expressa em sentido contrário, doadores de órgãos quando de sua morte?
As respostas a essas e outras perguntas podem ser alcançadas analisando os três “subprincípios” que formam o princípio da proporcionalidade. O primeiro deles é o da adequação. A pergunta que ele propõe é simples: a medida que está sendo considerada realmente permitirá atingir o fim desejado? Pode parecer óbvio – seria inconcebível uma ação estatal que não fosse apta a resolver o que se propõe resolver –, mas, na prática, não é tanto: muitas vezes a relação causal entre a ação pleiteada e o objetivo pretendido só consegue ser estabelecida depois de muita pesquisa e análise. Caso a medida proposta passe pelo critério da adequação, será colocada à prova pelo aspecto da necessidade: não existe nenhum outro modo menos restritivo de conseguir o mesmo objetivo? Essa pergunta se coloca para evitar que o poder público acabe optando por soluções às vezes mais fáceis, mas que no fim criam restrições desnecessárias e que poderiam ser evitadas.
É correto, em regiões muito violentas, ordenar o fechamento de bares a partir de determinado horário?
Por fim, resta o critério da proporcionalidade “em sentido estrito”, aquilo que se resume na expressão “justa medida”. A questão colocada é: as vantagens trazidas pela medida que se pretende adotar superam quaisquer desvantagens que essa restrição a algum direito ou liberdade provoca? Qualquer ação estatal que mexa na esfera dos direitos e liberdades precisa passar por esses três crivos (e necessariamente nesta ordem: adequação, necessidade e proporcionalidade) para ser considerada legítima.
Se retomarmos as perguntas feitas no início deste texto, agora podemos encontrar as respostas. No caso dos bares, por exemplo, a medida pode soar à primeira vista absurda e excessiva, restringindo tanto a liberdade de empreender quanto a de ir e vir. Normalmente o será, mas pode ser legítima circunstancial e excepcionalmente em uma determinada localidade. Pode ocorrer, de fato, que em determinada região a maior parte dos homicídios ocorra comprovadamente devido ao excesso de bebida consumida nos bares e às brigas que se seguem, e que o fechamento dos estabelecimentos tenha um efeito redutor realmente significativo (já existem exemplos nesse sentido). Satisfeito o critério da adequação, passa-se ao da necessidade: não haveria outro meio menos restritivo de conseguir o mesmo resultado? O reforço no policiamento nas proximidades de bares, por exemplo, seria uma possibilidade, mas pode ocorrer que em algum caso em particular seja impossível pela logística e recursos exigidos. E uma medida que dá mais resultados, como a educação da população, pode levar tempo. Chega-se, por fim, ao último critério, o da proporcionalidade em sentido estrito: ora, se de fato o fechamento dos bares salva vidas, a liberdade empresarial e de ir e vir cede com facilidade à importância da vida.
Já no caso da doação “compulsória” de órgãos, em que o objetivo é garantir a sobrevida de inúmeros cidadãos necessitados de transplantes, a proposta podia soar humanitária e razoável, e foi defendida por muitos entusiastas, mas não passaria – não passava – pelo tríplice crivo do princípio da proporcionalidade. Muito embora satisfizesse o último critério – razão pela qual a inclinação inicial de muitos foi favorável à lei –, pois a vida de uma pessoa justifica uma restrição da liberdade, não tão significativa (salvo em casos especiais, por motivos de crença religiosa), de decidir acerca do próprio corpo após a morte, a medida cedia já ao primeiro critério, o da adequação, pois a mera determinação legal de que todos fossem doadores enquanto não declarassem formalmente o contrário não resolvia o problema central da falta de órgãos, que é um problema de gestão e de logística. Ofendia, ainda por cima, o segundo critério, o da necessidade, porque era evidente que haveria um número grande de outras medidas menos restritivas aptas a estimular que um maior número de pessoas se prontificasse a doar seus órgãos quando falecessem: campanhas de conscientização e de informação, com um amplo trabalho em escolas e junto a hospitais e médicos; e uma melhoria expressiva da gestão, com integração de sistemas e dos dados acerca dos casos de necessidade de transplante e de pessoas dispostas a doar.
O princípio da proporcionalidade, assim, é decisivo na correta interpretação da Constituição e se constitui numa autêntica salvaguarda dos direitos individuais contra ações indevidas do poder público que violem a sua liberdade.