O cientista político Bruno Garschagen, no subtítulo de seu livro Pare de acreditar no governo, expõe uma das contradições do brasileiro: ele não confia nos políticos, mas adora o Estado. Também, pudera: o país viveu boa parte de seus últimos 100 anos governado por pessoas que viam no poder público – e especialmente o poder público federal – o único ou o maior protagonista do desenvolvimento socioeconômico do Brasil. É um tipo de pensamento que independe de cor ideológica: foi adotado tanto na era getulista (em que a extrema centralização do poder na esfera federal foi simbolizada pela queima das bandeiras estaduais, em 1937) quanto nas duas décadas de regime militar anticomunista e nos mais de dez anos de governo do Partido dos Trabalhadores, de esquerda. Mesmo os oito anos de governo tucano, classificado como “privatizador” e “neoliberal”, foram marcados por uma boa dose de estatismo e assistencialismo.
Assim, não surpreende que boa parte dos brasileiros tenha se acostumado a esperar que as soluções para seus problemas venham sempre de cima para baixo. E, quando dizemos “de cima para baixo”, não estamos nos referindo apenas ao poder público, ainda que esta seja a faceta mais visível desta mentalidade, refletida na tendência a se resolver absolutamente tudo com projetos de lei – alguns deles beirando o ridículo – e no fato de o espaço público passar a ser visto como “coisa de ninguém” (ou pior, como “propriedade do Estado”), quando deveria ser visto como “coisa de todos”. Acreditar nas soluções que vêm de cima para baixo também sobrecarrega entes não estatais, como associações de bairro ou entidades de classe.
Não surpreende que boa parte dos brasileiros tenha se acostumado a esperar soluções de cima para baixo
Mas existe uma outra maneira de olhar o protagonismo na vida em sociedade, uma maneira muito mais condizente com o reconhecimento da dignidade humana – do infinito valor de cada indivíduo e do respeito por sua liberdade – e com uma ética que privilegia o desenvolvimento pessoal. Podemos ilustrar essa ideia com um exemplo simples da vida profissional: não é verdade que um chefe centralizador, que toma para si as tarefas que seus subordinados podem executar, acaba impedindo que os funcionários se desenvolvam plenamente e adquiram as habilidades necessárias para bem realizar sua função? No longo prazo, o espírito de iniciativa dos membros da equipe estará completamente anulado. O bom chefe lidera quando respeita seus funcionários ao deixá-los trabalhar, valoriza o que eles trazem para o time e usa sua experiência para ajudar o subordinado quando for genuinamente necessário.
O mesmo raciocínio que aplicamos ao cotidiano de uma empresa vale para a sociedade. Cada pessoa, cada ente precisa ser livre para agir de acordo com suas capacidades e ter sua autonomia respeitada. Só quando uma pessoa ou um grupo não consegue realizar determinada tarefa é que a instância imediatamente superior virá em seu socorro. Onde a ação individual é insuficiente, vem a família; naquilo que a família não é capaz de realizar, contará com a ajuda de um grupo de famílias, de uma associação, de uma empresa; e assim sucessivamente, até as altas esferas de governo. Faz todo o sentido: são as instâncias inferiores as que estão mais próximas do dia a dia de cada um; é lá que os problemas são vistos com riqueza de detalhes e que se conhece bem os envolvidos e os afetados por cada decisão. As instâncias superiores, nesse esquema, não assumem o papel de protagonistas microgerenciadores; sua grande função é prover apoio – em latim, subsidium, o que explica por que esse princípio é chamado “da subsidiariedade”.
Cada pessoa, cada ente precisa ser livre para agir de acordo com suas capacidades e ter sua autonomia respeitada
Isso não significa, no entanto, que o poder estatal deva ser reduzido até se chegar ao “Estado vigia noturno” pregado por certas correntes do liberalismo. Na subsidiariedade, o Estado tem um papel importante ao vir em socorro das instâncias inferiores quando elas não se mostram capazes (ou interessadas) de resolver certas questões, posteriormente recuando quando a sociedade adquire a capacidade de executar a tarefa ou solucionar o problema. Há assuntos complexos demais, que exigem recursos que estão além das capacidades de certo grupo, ou que pedem a atuação de uma instância superior num papel de regulação – podemos pensar, por exemplo, nos grandes planos de infraestrutura. Nestes casos, o Estado precisa estar presente, mas sempre agindo “de baixo para cima”, começando pelo município e só exigindo uma ação do governo estadual ou federal quando a situação assim o pedir. Um exemplo é o dos Estados Unidos, onde muitas políticas são decididas nos condados ou nos Legislativos estaduais.
Uma sociedade que se guia pela subsidiariedade observa diversos tipos de vantagens. A mais evidente é o fato de a subsidiariedade empoderar as pessoas e as comunidades. Ela remove a noção de que o cidadão é um ser passivo e o transforma em agente ativo do progresso do local onde vive. Ela reforça os laços entre indivíduos, famílias e seus bairros e suas cidades, recuperando a noção de “espaço de todos”. Quem é dono se preocupa e cuida do que é seu, e sabe que os bons resultados são consequência do seu trabalho.
Outra feliz consequência da subsidiariedade é o estímulo ao associativismo. Em 1791, a França revolucionária aprovou a Lei Le Chapelier, que proibiu as corporações de ofício e os nascentes sindicatos. Seu pretexto era o de defender a livre iniciativa, mas sua consequência foi deixar os indivíduos à mercê de um Estado todo-poderoso; as associações formavam um “colchão” que, unindo os cidadãos em torno de um certo interesse, os fortalecia e os protegia do autoritarismo estatal, mas a lei francesa, ao proibir vários tipos de entidades, isolou o indivíduo. O associativismo tem esse lado fundamental de promover instâncias intermediárias para defender os cidadãos, as famílias, as empresas, mas não é essa sua única dimensão. Diante de um problema grande demais para ser resolvido por uma ou algumas pessoas, aqueles que estão conscientes do seu protagonismo não relegarão de imediato a solução ao poder público; antes disso, eles tentarão trazer para junto de si mais pessoas e se organizar melhor, em um processo que vai gerar mais e mais associações, aumentando o capital social de uma nação.
Outra feliz consequência da subsidiariedade é o estímulo ao associativismo
Nos lugares onde as pessoas se reúnem em torno de interesses comuns – seja o cuidado com o local onde vivem, seja a defesa de uma causa –, a sociedade se fortalece e se torna mais plural. Isso já tinha sido observado no século 19, quando Alexis de Tocqueville escreveu A democracia na América, e ganhou nova comprovação empírica no século 20, especialmente com o trabalho de Robert Putnam, que observou as regiões italianas criadas na década de 70 e descobriu que a existência de várias associações, ligadas aos mais diversos temas, era um dos principais fatores que faziam uma unidade administrativa funcionar melhor que outra.
Em seu discurso de posse, em 1961, o presidente norte-americano John Kennedy usou uma frase que ficou célebre: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer por seu país”. Colocar em prática a subsidiariedade é mais que fazer “algo” pelo seu país: é fazer, na verdade, muito por cada pessoa e por toda a sociedade.
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