"Sou Charlie, sou judeu, sou tira, sou laico" – cartelas com estas afirmações apareceram de forma insistente na admirável jornada de solidariedade nas ruas da França no último domingo. Ser Charlie significa acreditar na inalienável liberdade de pensar, expressar-se e irmanar-se aos 12 chacinados na redação do Charlie Hebdo.

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Ser judeu neste triste momento é uma desassombrada manifestação de solidariedade aos quatro reféns, cidadãos franceses de religião judaica, ortodoxos, massacrados na véspera do descanso sabático, num empório de alimentos kosher. Identificar-se como flic – tira – é uma forma de homenagear os três policiais caídos no cumprimento do sagrado dever de proteger concidadãos desarmados do rancor terrorista – uma mulher e dois homens de origem árabe. Declarar-se laico, leigo ou secularista significa dar um passo à frente para escapar da hidra do fanatismo religioso e libertar o Estado de Direito democrático de seu mais duradouro grilhão.

No grande debate armado no mundo livre, em seguida às duas chacinas parisienses, as quatro afirmações precisam ser devidamente destacadas e assimiladas. Ser Charlie transcende a heroica resistência do grupo Charlie Hebdo à chantagem do fanatismo religioso. Ser Charlie também significa identificar-se com o escritor hindu-britânico Salman Rushdie, autor do admirável Versos Satânicos, condenado à morte em 1989 como blasfemo pelo aiatolá iraniano Khomeini. Passadas quase três décadas, Rushdie vive nos EUA, aprisionado numa humilhante semiliberdade e semiclandestinidade, ainda ameaçado pela insanidade de algum psicopata que se sinta eleito para divinas e diabólicas missões. Não se sabe se Rushdie considera-se Charlie, mas os milhões de Charlie também são Salman.

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Nos cinco séculos decorridos desde que Michelangelo deu a última martelada no seu Moisés, nenhum rabino, teólogo, fanático ou lunático condenou a belíssima escultura como herética, ofensiva ao judaísmo. O profeta representado por Michelangelo exibe na testa um pequeno par de chifres, resultado de um erro de tradução do hebraico para o latim. O versículo bíblico que inspirou o genial artista da Renascença refere-se a dois raios de luz e sabedoria que se irradiam da cabeça, nada a ver com cornos. Nem o Moisés de Freud foi anatematizado por considerar o profeta como príncipe egípcio.

O que nos leva aos quatro reféns judeus metralhados no empório – que ofensa fizeram à figura ou ideias de Maomé? Religiosos, preparavam-se para cumprir os mandamentos relacionados ao shabath (que os muçulmanos antecipam para a sexta-feira). A equivocada decisão de seus familiares de sepultá-los no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, não legitima a barbaridade de tirar-lhes a vida. Se judeus devem ser eliminados por serem judeus, o que se legitima é a aberração nazista.

Homenagear os policiais fuzilados e identificar-se com o laicismo constitui uma opção política única e crucial, talvez a mais importante no atual estágio de aperfeiçoamento da democracia. O servidor do Estado, independentemente das suas convicções, é servidor de uma entidade plural, diversificada e isonômica. O laicismo incorpora as três palavras-chave da Revolução dos Direitos Humanos chamada de Revolução Francesa: liberdade, fraternidade, igualdade. O laicismo não é contra a fé, mas a favor de todas as crenças e inclusive da descrença. Ao libertar a religião das tarefas temporais que cabem ao Estado, oferece-se a ela a liberdade de envolver-se exclusivamente com a esfera da espiritualidade.

O direito de ser desfilou nas ruas da França como se fosse novidade. É uma das mais antigas reivindicações da humanidade.

Alberto Dines é jornalista.

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