A cassação de Roberto Jefferson era inevitável a não ser que a Câmara estivesse disposta a praticar suicídio coletivo à moda de Jim Jones na Guiana em 1980. Seria impensável que alguém que confessa publicamente ter recebido 4 milhões de reais de "recursos não contabilizados" para usar o dialeto petista e estava entranhado até a medula na corrupção pública saísse incólume. É verdade que, ao ser pego em flagrante depois da inconfidência do fulano dos Correios, resolveu abrir as porteiras das cavalariças do Rei Augias e levar a nação a uma visita instrutiva à nojeira acumulada. Lamentavelmente não temos um Hércules para desviar dois rios levando de enxurrada toda a sujeira nauseabunda e ao contrário, temos uma legião de serviçais em todos os níveis dispostos a tapar as narinas, pedir a Deus que a população esqueça do assunto e que chegue logo o carnaval e a Copa do Mundo.
O resto obedeceu à rotina de sempre: protegidos por uma providencial medida do presidente do Supremo, vários dos outros acusados passeavam alegremente no plenário, riam com gosto enquanto depositavam o voto nas urnas talvez sem perceber que, mais dia menos dia, subirão ao mesmo cadafalso. O que alegou que a mulher foi pagar uma conta de telefone celular e saiu da agência bancária com 50 mil reais na bolsa, já recobrou a compostura perdida logo depois da descoberta de que estava mentindo e circulava com desenvoltura. O outro, o professor de nome diminutivo, que confessadamente recebeu 20 mil reais para "ressarcimento tardio e informal de despesas de difícil ou improvável aprovação legal" (contribuição para o impagável glossário do mensalão de Everardo Maciel), ria satisfeito pois está blindado por algum tempo. O terceiro, que excluiu o Banco Rural do relatório sobre a CPI do Banestado não estava à vista, como também não estavam os nossos conterrâneos, todos talvez reunidos com assessores e advogados para estudar a próxima chicana jurídica.
As CPIs são a cara do Brasil. Um país sem memória histórica, jejuno em termos institucionais só poderia ter no seu comando pessoas desmemoriadas. O Presidente da Câmara não se lembra de ter recebido um cheque de R$ 7.500,00 do restaurateur, o tesoureiro do PT se esquece de anotar o nome das pessoas para quem repassou milhões, os dirigentes do PT não se lembram de Marcos Valério, ninguém se lembra de conferir o estrato bancário para verificar quem aportou volumosos depósitos em suas contas. A presidente do Banco Rural se esquece de recomendar aos seus executivos que não entreguem mais de 50 milhões de empréstimo a alguém baseados apenas no cumprimento futuro de um contrato de publicidade. E o Banco Central, tão cioso em exigir que o coldre do guarda das agências esteja colocado do lado certo e tão rigoroso em apontar o dedo da responsabilidade in-vigilando em direção aos menos afortunados se esqueceu de fiscalizar. Ninguém se lembrou de ler o que assinou, ninguém do mandarinato petista ficou curioso em saber onde se localizava a mina de ouro descoberta pelo companheiro Delubio .
No país da ambigüidade e da imprecisão, que Affonso Romano de SantAnna chamou de "país barroco", o rigor da linguagem ajuda a esconder a verdade. Perguntada sobre um cheque, a secretária de Severino nega veementemente que ele exista; quando confrontada com o próprio, alega que lhe foi perguntado sobre um cheque passado em 2003 e que o cheque apresentado era de 2002. Notas oficiais e declarações também escondem armadilhas semânticas: a afirmação de que "não assinei conscientemente esse papel" deixa a porta aberta para uma retificação oportuna baseada na assinatura inconsciente; um "não me lembro de ter visto o sr. Marcos Valério" comporta um "lembrei-me agora" quando os fatos desmentirem a informação.
E no país da paranóia vitimalista, a "filósofa-musa" Marilena Chauí não entende porque a direita tem tanto ódio do PT, mas também ainda não conseguiu formar um juízo sobre a crise cem dias depois dela ter se escancarado aos olhos e ouvidos da população minimamente atenta mesmo sem dispor de elevadas qualificações doutorais, Severino ressuscitou a tese de que o perseguem porque é nordestino, Lula repete a cantilena de que as elites o detestam, Gushiken repete que foram as "forças da direita" que criaram a indescritível corrupção que floresceu sob seus orientais e imprescutáveis olhinhos. (Gushiken é outro em que minha avó Dona Glorinha não confiaria, guiada pelo tamanho e aparência dos olhos pequenininhos).
E no país da grandiloqüência, alguns creditam seus problemas ao desconforto dos inimigos com o "que representam na história do Brasil". Que história, companheiro? Algumas pessoas que se julgam protagonistas são quando muito coadjuvantes e sua contribuição para a história pátria talvez não venha a caber numa nota de pé de página quando os historiadores, isentos de patrulhamentos de um lado e outro, recompuserem a verdadeira história do Brasil do século 20. Como diz Hélio Fernandes: "Que república!"
P.S. Esta crônica foi escrita e é para ser lida ao som de "Vai Passar", de Chico Buarque, e presta homenagem aos versos "Ai que vida boa ô lê lê, ai que vida boa ô lá lá, o estandarte do Sanatório Geral vai passar!"
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Mestrado da FAE Business School e membro da Academia Paranaense de Letras.
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