O Brasil se rende outra vez aos apelos da ocupação ligeira dos espaços urbanos, chamando de "pobre e esquecível" a arquitetura que habita o campo sagrado da memória
É de consenso que o Brasil chegou tarde às políticas de preservação do patrimônio histórico. E que paga um preço alto por isso. As primeiras fumaças sobre o assunto são de 1937, quando o governo Vargas cria o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan). Pode parecer tempo o bastante para que o país tenha se penitenciado e aprendido a lidar com seu passado. Mas sabemos das fragilidades a que por ironia, "historicamente" estão sujeitas nossas práticas culturais, filhas feias de pais desconhecidos. O resto se deduz.
Qualquer mirada nos cenários das grandes cidades brasileiras é o bastante para confirmar que trançamos as pernas no assunto. Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte para citar três grandes se descaracterizaram de tal forma que só resta se deliciar com álbuns de fotografias antigos, não por menos um fetiche do mercado editorial. É assunto que já deu flor, como se diz. O problema é que parecemos não ter aprendido nada com a política de descaso que se sobrepôs ao que poderia ser política de preservação da memória. A entrega irrestrita aos interesses imobiliários permanece a medida de todas as coisas, o que é de uma ignorância supina.
O argumento de que as cidades europeias ganham dinheiro aos borbotões graças aos milhões de turistas que para lá acorrem, atraídos pelo patrimônio, costuma ser recebido às gargalhadas nessas plagas. "Ah, mas é a Europa", diz-se, dando a entender que um estrangeiro que venha até o Brasil está mais antenado nas matas e nos macacos no que pode igualmente se frustrar que num apanhado de prédios ecléticos, sem fausto nos capitéis, cujo destino melhor é virar caliça.
Ora, o turista interessado justo o que mais importa sabe que uma cidade vale por seus ecos vienenses, mas acima de tudo por ser uma cidade de verdade. Esse visitante tem cultura urbana. É um curioso e anda pelo mundo com uma mochila às costas, sujando a barra das calças. Subestimá-lo é subestimar o conhecimento que de fato mobiliza. Caso o argumento não convença, resta pensar nas crianças privadas de conhecer as mais diversas linguagens arquitetônicas que formam o lugar em que vivem. Nossas ruas deveriam estar cheias de escolares conferindo o museu vivo e a céu aberto que está a seu dispor.
Dirão que o "bota abaixo" contínuo a que nossos centros urbanos estão sujeitos é feito em nome do futuro. E em nome do espaço, pois as áreas estão esgotadas. Ignora-se que grandes corporações da Itália ou da Inglaterra funcionam em prédios do século 18 ou 19, reciclados por papas da arquitetura contemporânea como Renzo Piano. Até onde se sabe, cabe toda gente nessas construções. O argumento do uso do solo é uma piada. Olhe para um dos mastodontes espelhados da cidade e se pergunte quantas pessoas moram ali. Talvez haja não mais que 100 habitantes num prédio de 20 andares da Praça do Japão, em Curitiba.
Além do patrimônio chinfrim ou não que beija o chão todos os dias, há outra tragédia anunciada. Vão para os aterros o que foram um dia conjuntos de arquitetura neoclássica, ou déco e nouveau, ou precisamente conjuntos da era getulista e da era ferroviária. São tidos como desimportantes. Mal não faria se em seu lugar, então, viesse algo melhor; mas as prefeituras respondem que regular o mau gosto dos arquitetos equivale a censura. Estrangeiros do ramo, em visita ao Brasil, ficam pasmos ao perceber que nossa arquitetura novíssima tem pouca permeabilidade com a rua. E que uma construção concorre com a outra na paisagem, consolidando a anticidade, como pisa e repisa o antropólogo Mike Davis sobre lugares que negam o que é próprio do urbano.
Em resumo, nossa arquitetura novíssima está de costas para a própria cidade, habitando um mundo paralelo de alienação e individualismo. A negação do patrimônio como bem público e como linguagem é uma face desta ordem perversa. O peso que faz carregar é a da perda da identidade, o anonimato, a pasteurização. Em Curitiba, a face mais recente dessa tragédia está na demolição do centenário Matte Leão, no Rebouças, e na venda do hospital psiquiátrico da Federação Espírita, no Bom Retiro, em dias de seu encontro fatal com as marretas. Pena. Só uma política de patrimônio sólida pode ajudar a sociedade a pensar que modelo de cidade persegue. É da vida saber até onde se pode ir.